quarta-feira, 10 de abril de 2019

Diário Português: Mircea Eliade

Trabalhando e muito na minha profissão, doze, catorze, por vezes dezasseis horas - momentos houve em que fazia directas - dou comigo quase a pedir desculpa ao meu trabalho pelo tempo que gasto a ler, a pensar, em escrever fora do que seja a advocacia; e ao mesmo tempo - mundo contraditório este, sem a esperança dialéctica da síntese que tudo conjugue - a lamentar-me por tão pouco ler, tão pouco pensar, tão pouco escrever. E a jurar mudar tudo e a sofrer por não se alterar nada de significativo.
Foi, por isso, um conforto de alma ter terminado ontem ainda, esfarrapado de cansaço, a leitura do Diário Português de Mircea Eliade, escrito durante os quatro anos e alguns meses que esteve a Portugal, onde chegou em 1941 como adido de imprensa da Embaixada da Roménia do seu país. Conforto, pois nele esse estado permanente de angústia existencial em que tanto me revejo com a diferença de que a profissão era para ela parte diminuta do seu tempo, cada vez menor até à redução a zero, abandonado que foi sendo pelo Governo do seu País, estigmatizado pelas ideias fascistas que nutrira, e vilipendiado por as ter vindo progressivamente a abandonar com a passagem dos anos e o devir da História, o país a tornar-se uma colónia soviética, eles que são, os romenos - título de um opúsculo seu - Os Latinos do Oriente.
Já escrevi neste mesmo lugar três vezes sobre a sua pessoa e obra [aqui, aqui e aqui].
Personagem complexo, avulta neste diário a tensão permanente entre a dimensão espiritualista - que o levou à Índia, às filosofias orientais e à História das Religiões, passando pelo ocultismo - e as exigências eróticas, privado das quais era acometido de crises permanentes de neurastenia, o sexo como profixalia higiénica da biologia, a ascese carnal como ponto ómega da reintegração do humano, e - disso falei nos outros escritos - um inconsolável amor por Nina Mares, sua mulher, cuja agonia se deu na casa em Lisboa, aqui na Elias Garcia, lateral à Igreja de Fátima.
Dotado de uma curiosidade insaciável, ávido leitor, incessante escritor, custa crer que toda essa pujança criadora se deu, espasmodicamente, não tendo ele chegado aos quarenta anos. Compreendi a razão quando comprei, folheei, e haverei de lê-los mastigadamente, os dois volumes da sua autobiografia, e sobretudo quanto ali se prenuncia, desde a infância, um destino de excepção.
Devastado por tempestades anímicas, afunda-se em leituras de Sören Kierkegaard, que ficou como ícone do pessimismo filosófico e do desespero. Mas que distância. Não só pela legibilidade que no dinamarquês é a sua menor virtude, mas porque em Mircea tudo é vazado no papel como se as entranhas se derramassem em todas as escalas sentimentais. Escreve porque vive, profundamente. Lê-se como se a nudez da nossa alma fiasse exposta, reflexamente.