segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

A inesperada maravilha


Ter nas mãos um livro inesperado por não se saber a razão pela qual se adquiriu, ver nele, como autor, um nome que logo se alcança ser pseudónimo, autor que mesmo depois de desvendado, não há dele vestígio conhecido. Lê-lo, e nele descobrir magnificência no modo de escrever, riqueza vocabular e a estilística que convoca do real a existência e da fantasia a possibilidade. Chegar ao termo com o coração apertado pela tragédia humana que o sentimento de quem o escreveu soube encontrar e a que não fugiu, e tudo isso trazer eco de memória. 

Eis quanto encontrei ante o livro China, País da Angústia, assinado como de Ruy Sant'Elmo, afinal Abílio Augusto de Brito e Nascimento, personagem ignoto mas que consegui saber ter sido juiz em Macau. A obra, com capa de Fong-Iôn-Chi foi impressa em 1938 e publicada pela Parceria António Maria Pereira.

São contos, Kakemonos, lhe chamou o autor, como «a pintura chinesa, executada em peças móveis de papel ou seda, colada sobre um tecido ou papel mais forte, que lhe serve de moldura e se prolonga pela parte superior, terminando por um rolo de madeira». 

Mas não só: há a apresentá-los uma rememoração de alguns dos conceitos taoístas, e tanto eles regressam como luz interior ao conteúdo de cada narrativa, trazendo-lhes, nesse «o quer que seja»  um outro sentido para além do imanente conteúdo narrativo, o mundo na sua identidade em constante transformações, pois, em todo esse seu mundo aparente de sombras, dor e agonia, «não há senão vida...Transformação incessante...A morte não existe!».

Tanto há no que li que traz recordação e presença, logo o título, a convocar o Angústia em Pequim de Maria Ondina Braga, que, tal como ele, soube embeber-se dessa alma oriental no sentido da máxima melancolia e da íntima compreensão, mescla que em outros convidaria ao distanciamento, almas geminadas de Camilo Pessanha e Wenceslau de Morais, que a vida amaldiçoou, martirizando-os até ao supremo exaurimento.

No momento de vir aqui, não sei o que vos traga do que li. 

São as excelentes formulações, formas de ver ante o que se lê, como ao falar da orografia local e seus montículos se lhes refere como «o dorso das eminências, zebrado de clareiras», ou a propósito dos tormentos infligidos por ordem do mandarim, «cevando a raiva apavorada da reivindita», ou, cruzando-se, indiferente, com a carpa agonizante junto da folha verde-jade dum golfão azul «o estertor da morte, a convulsa agitação dos opérculos, faziam estremecer as escamas que tremeluziam em lucilações cor de brasa», ou, enfim, a velha e seus «olhos pequeninos, sumidos entre papulusidades refranzidas das suas pálpebras oblíquas, que perscrutavam o insondável».

É a recriação da língua, indo surpreendê-la em vocábulos raros mas que arrastam, alguns pela onomatopeia, ideas, factos, sensações, como a «bruma glutinosa», o «ar bochorno», a «poeira exil das fumaças» de ópio, a «fauce hiante» dos leões de Fó, as «curvas alvorescentes» da delicada figurita de rapariga, a «nevoeira incoercível» cor de zinco, as «arnelas dos dentes à mostra», a «tremulina murmurante da sua ondulação».

Mas é sobretudo a natureza invulgar, surpreendente, insólita mesmo dos costumes e suas tradições que são o rasto da narrativa, ao trazer-nos, invulgar, o necessário casamento para um morto e assim se não perde a linhagem, ao contar-nos o inquestionado modo de a ida ao templo trazer a prenhez da mulher do homem estéril, que no silêncio resignado quanto ao modo de ela ter sido alcançada, encontra, sim, meio de procurar o que pretendia, afinal, a descendência, ao afogar-nos os sentimentos pelo ópio que não mata, mata sim a insaciedade do viciado, ao relatar, com grandiloquência o suicídio vingativo de quem não poderia, sem perder a face, bandido embora, sofrer derrota às mãos alheias.

Muito mais haveria nesta obra dedicada a Leal da Câmara.

É preito de respeito que, ao falar do que se leu, não se estrague o prazer a quem puder  vir a ler. Livro raro este, será improvável que haja quem eu possa assim ofender contando mais. Fica, no entanto, apenas este excerto por uma outra legítima razão, a de a minha escrita sobre quanto li ficar aquém e ficará seguramente muito aquém de quanto li e me trouxe a inesperada maravilha.