Tenho mantido presença regular em cada número da revista As Artes entre as Letras, quinzenalmente publicada no Porto, sob a direcção de Nassalete Miranda.
No penúltimo número escrevi sobre uma crónica de Ramalho Ortigão, a qual é mais um elemento a demonstrar a não equivalência entre a imagem pública do mesmo e o seu pensamento real. Isto para não não falar nas censuráveis atitudes, até em relação a Eça de Queiroz, seu companheiro e amigo dedicado, como o falecido Campos Matos demonstrou.
Veio isto ao pensamento por causa de uma leitura a três dias da minha rentrée profissional e com ela o consequente sufoco para tudo o que não seja o mundo das leis e conflitos ali desaguantes.
Vieram numa caixa e num pacote adjacente, expedidos por mão de alfarrabista amiga, muitos volumes da Obra Completa de Ramalho Ortigão. Conhecia-a mal e fiz menção de me aproximar da sua vida e obra.
O que me liga ao escritor não é, permita-se a ironia, Reis Brasil na sua História da Literatura Portuguesa, que eu tenha na 3ª edição, revista, sem publicada em 1971 sem menção a editor, o dar como nascido em Barreiros, lugar do concelho da Maia, quando todos os demais situam no Porto o seu lugar de nascimento, na Casa de Germalde à Lapa, freguesia de Santo Ildefonso.
A ligação decorre, sim, de eu o associar acriticamente a Eça de Queiroz e assim à escrita, em esforço geminado, das Farpas e através delas à crítica social áspera e dir-se-ia “progressista” e ao movimento fracturante da Questão Coimbrã, e ao movimento renovador dos autodenominados Vencidos da Vida. Tudo como se a de uma mentalidade à frente do seu tempo, cáustica, morigeradora e por isso, erradamente indissociável do autor de A Cidade e as Serras.
Vagueando preguiçosamente pela minha dispersa biblioteca, assim o encontro retratado na colectânea Como se Devem Ler os Escritores Modernos, obra conjunta de João de Barros e Guerreiro Murta, editada pela Sá da Costa em data que o livro não menciona, mas foi o ano de 1940, com republicação em 1942: «é dos poucos moralistas da nossa história literária, sabendo corrigir com bom humor, e censurar sem acrimónia, mas apenas com severa e rígida justiça».
Já não é tanto assim a apreciação de Óscar Lopes e António José Saraiva, na sua História da Literatura, aquela que o professor de Literatura do meu 7º ano do Liceu em Viseu dizia que o Reitor o avisara para não recomendar e, claro aquela que, por isso, logo comprei. Nessa obra de referência aludem à «formação tradicionalista de Ramalho», ao seu «culto, no fundo provinciano, da elegância citadina», en bref, autor de uma obra que «exprime um bom senso burguês de sentidos apurados».
Três surpresas me aguardavam, porém, ao ter pormenorizado o meu breve estudo para este artigo.
Uma já provinha do antecedente ao encontrar-me com a sua Carta de um Velho a um Novo.
Mas, eis o que dita esta crónica, regressando aos volumes da Obra Completa e concretamente ao tomo que compendiou as Crónicas Portuenses. Entre elas li a que foi editada no Jornal do Porto, propriedade de José Barbosa Leão e publicada no n.º 87 desse periódico a 20 de Junho de 1859.
A prosa é uma diatribe feroz contra um livro de versos, intitulado Esboços Poéticos, da autoria da actriz Eugénia Infante Câmara.
A sua intensa vida amorosa daria, aliás, tema a um filme de José Leitão de Barros, intitulado Vendaval Maravilhoso, rodado em 1949 em que a sua pessoa foi representada pela fadista Amália Rodrigues e cuja cópia foi restaurada pela Cinemateca Nacional.Ora Ramalho não a poupa, a crítica é deapiedada: «o livro da senhora Eugénia não presta para nada. É uma colecção de babosas tolices; é um apontoado em partes surrado e sujo, de insofríveis parvoiçadas; é um empacho, um cataplasma, uma papa de insipidez». E não se fica por aqui: «A senhora Eugénia Câmara enceleirou nos antros da sua retentiva um cabedalão de pieguices chochas, chanças gordíssimas e de acumulados arrojos duma grosseria nada feminil».
Mas o pior é a apreciação generalizadora que o crítico faz do papel da mulher escritora.
Lê-se com um arrepio de alma: «Livrinho escrito por senhora, cá para mim, significa sempre um duplo desastre», porque, em sua opinião: «A mulher que faz livros transcura a sua missão, desfita o alvo do seu existir, transvia-se da sua trilha, rescinde os seus direitos, deixa de ser mulher, fica sendo somente a fêmea do homem, ou antes um homem-fêmea».
Fica equacionado o tema. Urge dissociar Eça e Ramalho, essa «estranha amizade», como a qualificou Maria Filomena Mónica e aceitar o que Campos Matos documentou sobre a Ramalhal Figura e o seu lamentável comportamento para com a obra daquele seu companheiro, morto este. E sobretudo, relativizar tudo, para tudo melhor compreender. Não ter ilusões enquanto se não cegar.