sábado, 6 de dezembro de 2025
Os Serões de Camilo
Ler Camilo Castelo Branco, não pelos livros óbvios do extensíssimo numero dos que publicou.
Ler hoje Camilo num tempo em que o contexto histórico, que deu vida à sua obra, é hoje memória perdida nos tempos, mesmo a dos mais velhos.
Ler os "Serões de S. Miguel de Seide", na edição de 1928, da Lello & Irmão, dois dos dez volumes justapostos num só tomo, publicação que ostenta ainda como título e na grafia antiga a palavra "Seroens".
Ter lido quase tudo desse volume e vir aqui dizê-lo, dando conta da consabidamente interminável riqueza do vocabulário de seu autor, a sobrepujante estilística no modo de descrever factos, pessoas, momentos e sentimentos, a consciência social expressa por uma estética refinada de que os neo-realistas do quarto decénio do século vinte nem sempre foram capazes.
Ler Camilo e reencontrar no texto prefacial deste livro a modéstia verdadeira dos verdadeiramente grandes, expressa na frase em que não promete "senão coisas pequenas, quando muito do meu tamanho".
A obra anuncia-se como de "novelas, polémica mansa, crítica suave dos maus livros e dos maus costumes".
Leio amiúde como o caranguejo se desloca, do fim para o princípio, e por isso ontem à noite foi a vez de abraçar a narrativa inicial dedicada à generosidade do Segundo Comendador, João Palhares, a Brites Ferreira, esta natural da povoação de Tourencin "de maior idade e sui iuris", assim o rezou a escritura pública lavrada pelo tabelião do lugar. Dádiva tornada paga tardia ante o sofrimento causado por amores impossíveis, tomadas por ele ordens menores de uma carreira eclesiástica de que se afastaria, mas ficou como impedimento moral a trato conjugal ou comércio carnal sem pecado.
Li e a citada expressão latina, provinda do Direito Romano, levou-me o espírito divagante ao primeiro ano do curso de Direito onde tentaram, sem sucesso, que eu, aos 17 anos, aprendesse e me entusiasmasse com essa árida disciplina: "sui iuris", literalmente "de seu direito", aquele capaz de reger a sua pessoa e bens, sem outrem, portanto, que supra sua incapacidade, por contraponto a "alieni iuris".
E aqui estou, Sábado frio e ameaçador de chuva, refugiado entre antiqualhas.
Regresso agora ao livro e seu prelúdio, no a propósito de Alexandre Herculano, ali citado, quando se queixava das "estiradas noites infinitas do Inverno em Vale de Lobos", local do seu voluntário exílio, do mundo descontente e da vida homiziado.
