quarta-feira, 24 de março de 2010

Abastardamento e canja de galinha

Somem-se os defeitos, multipliquem-se pelas críticas, leve-se em conta a arrogância. Agustina Bessa-Luís é um génio. Primeiro, pela inteligência, enfim pela inteligência. Há na sua escrita um estilo, mas há quem o considere denso e rebuscado. Há trama, mas há os que pensam que ela se enrola em detalhes e contradições e o leitor perde-se. Mas há, isso sim, em cada página e tantas vezes muitas vezes em cada página observações e modos de dizer que são eles próprios um tratado sobre a questão. «A nobreza portuguesa abastardara-se pela pequeno virtude, e melancolia dos vícios de família e neflibatice de sala de jantar». E como se não bastasse para ter demonstrado o seu ponto acrescenta: «os Braganças gostavam de canja que é uma dieta sem imaginação».
Onde vem isto? Na biografia de Floberla Espanca. São os a-despropósitos o que marca a diferença. Não visam
reforçar um discurso, surgem assim, desagregadores, geniais.

domingo, 21 de março de 2010

António Quadros

Num blog que se chama Geometria do Abismo escrevi sobre ele: «se há momentos de uma filosofia que marcam um destino, o que ele escreveu sobre o mal do positivismo traçou-me a rota mental». Devo-lhe pois tudo.
Sim, foi António Quadros quem me deu a conhecer a filosofia portuguesa, quando ela já era um corpo sedimentado e sistematizado. Pela sua mão fui percorrendo os caminhos de um Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro, Santana Dionísio, José Marinho, para chegar a Brás Teixeira, Sinde Monteiro, Elísio Gala, a tantos outros que estou a ofender não lhes mencionando o nome. Conheci entre os vivos apenas Pinharanda Gomes, porque o entrevistei. O meu modo isolado de ser vedou-me outras companhias.
Guiado pelas veredas íngremes da saudade e pelas alturas da Tradição, desvendando lápidas ocultas e submetido a sortilégios e outros encantamentos de um mundo maravilhoso, foi sobretudo através dele que aprendi que só há uma filosofia magnífica da existência fora do que sofremos ser o raquitismo do existente, nas terras a que a razão não ascende, de que o racional ignora os segredos.
A transcendência do humano alcança-se com essa leveza de asas, o céu como horizonte.
Pressente-se quando por detrás de um sistema tranquilizante está uma angústia mansa. Eis a biografia deste homem. Um grande Homem. Deixou, mais do que uma obra, um exemplo. Faz hoje dezassete anos que se escondeu da nossa visibilidade para que o recriássemos com os remorsos da nossa memória. Ficou a obra como testemunho de que esteve aqui.

A renovação anual


A Natureza acompanhou o calendário. Veio o sol e o calor e um dia convidativoa abraçar-nos, como se a pedir desculpa por tanta chuva e frio. Depois foram os pássaros e os insectos em epifania. No território dos vivos renovava-se a esperança incendeiam-se os corpos de amor.

Nas bocas do mundo

São expressões, idiomáticas algumas, mas não idiotismos, típicas certas delas da nossa língua. Explica-se a sua origem e fundamento. Aprendi no livro que andar em fila indiana decorreria de uma táctica dos índios - não dos indianos - que «caminhavam em fila para disfarçar o número dos elementos do grupo». É que «se fossem seguidos, como perseguidor apenas veria uma fileira de pegadas, não saberia qual a quantidade de homens do grupo».
O autor de Nas Bocas do Mundo é Sérgio Luís de Carvalho. Escreveu vários romances, o último em 2009, O Destino do Capitão Blanc. Resolveu-se a escrever esta obra porque viu o Nuno Rogeiro na TV a dizer «a presença de tos esses metecos é uma verdadeira espada de Dâmocles sobre a democracia francesa». Perguntou-se «quantas pessoas teriam percebido essa frase». E o mais também.

sábado, 20 de março de 2010

O Plutocrata

1910, 1926, 1974. Revoluções. E no entanto, no rescaldo de todas elas «as mesmas hierarquias, as mesmas posições nas hierarquias, os mesmos nomes, as mesmas famílias, a mesma gente nessas posições dessas mesmas hierarquias». Feitas em nome do «povo» o dito povo sai delas apeado.
É ao estudo deste «enigma», que Ernesto Palma dedicou a sua atenção. É uma zoologia do mando, mundo de carnívoros, nos quais a posse do dinheiro conta ou ao menos a sua disponibilidade. A figura capital, o plutocrata. A obra, intitulada O Plutocrata é uma recente edição da Serra d'Ossa. Fruto de tertúlia, essa forma conversante de aprender, é um livro indispensável. Cada uma das suas setenta e três páginas contém uma ideia, uma sugestão, um apelo. No final sai-se bravo, iniciado para uma nova forma de ver.
Sei que é assim. No nosso Alentejo a Reforma Agrária fez-se por causa dos ganhões proletários contra os latifundiários «fascistas». Hoje, ei-los quase todos regressados, mais os pequeno-burgueses, enteados da Revolução e os por ela adoptados, em montes de fim-de-semana, sempre, sempre ao lado do povo. Este um pouco mais abaixo. É a lei da continuidade bastante e da distância conveniente.

A vida e o ideal

Numa carta que escreveu em 1 de Dezembro de 1905 a Amadeu de Souza Cardoso, Manuel Laranjeira, sentindo «morrer a vida» diagnosticava a doença: «não poder talhar a vida ao nosso ideal». «É uma enfermidade de que não sofre o Lopes brasileiro, e ainda bem, poque seria relaxar muito a enfermidade. Demais a mais, a ele bem lhe bastam os calos e joanetes, que são as doenças transcendentais de que sofre um nabo daqueles». As cartas foram publicadas em 1943, numa edição da Portugália, com um prefácio de Miguel de Unamuno, numa colecção chamada  Documentos Humanos. Apropriadamente.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Memória de uma Mulher de Letras

A vida literária portuguesa, a vida política portuguesa, a vida portuguesa em geral, ou talvez melhor diga, a vida está pejada de pequenas zangas e melindres. Talvez seja isso mesmo que lhe confere intrinseca humanidade. Tudo menos a fantasia, a ilusão, a fábula.
Temos já santos em altares que bastem, rodeados de auréolas de virtudes, o País está carregado de estátuas de heróis sem manchas outras que as dos pombos.
Li ontem, por ter sido finalmente possível voltar a ler, as memórias de Manuela de Azevedo. Jornalista, escritora, mulher de cultura, camoniana e da memória de Camões guardiã. Ou melhor comecei a ler, porque falta parte ainda. O livro chama-se Memória de uma Mulher de Letras.
Nota-se ali mágoa porque Etelvina Lopes de Almeida se deixara nomear para a Direcção da Modas e Bordados - que era um bastião de aculturação encapotada - quando Maria Lamas dali fora afastada por perseguição política; vê-se ali constrangimento porque Igrejas Caeiro se esquecia de contar quanto devera à intervenção de João de Barros, sogro de Marcelo Caetano, o seu regresso ao teatro do qual fora afastado, também por política, nota-se uma visão de quem soube construir certezas por cima dos desapontamentos.
O livro é graficamente muito bonito. Na escrita a autora repete-se, o que uma cuidada revisão poderia ter evitado. Mas seja. A vida também é isso, contarmos mais do que uma vez a nossa história.
São histórias de um Portugal que faz sorrir. Democrata, filha de um republicano perseguido pela «canarilha» que se juntou em torno de Afonso Costa, Manuela de Azevedo acabaria perseguida pelos que ocuparam o Diário de Notícias e procederam a injustos e ferozes saneamentos. Um deles dá pelo nome José Saramago. O falecido João Coito, chefe de redacção do jornal à época, chamava-lhe invariavelmente, «o erva daninha», recusando-se a citá-lo pelo nome próprio.

domingo, 14 de março de 2010

Uma longa viagem

João Céu e Silva gosta de António Lobo Antunes. É amigo e aprecia-lhe a obra. Talvez por isso a conversa é solta, fluente, e consegue que ele se retire daquela guarda em que a hesitação se transmuta em arrogância e a conversa um titubear de espadachim, com toque de florete.
Comecei hoje a ler a longa obra que corporiza anos de conversa entre ambos, Uma Longa Viagem com Lobo Antunes. Não sei porquê comecei pelo fim, pelas conversas mais recentes. Nessa altura já o seu último livro estava pronto e o autor perguntava-se uma vez mais, pela enésima vez, se não deveria parar de escrever. Mas juntava uma outra ideia: a dúvida existencial sobre se não seria algum outro ser superior que escrevia através dele.
A idade abala os agnosticismos, por vezes converte ateus. António Lobo Antunes declara-se um homem religioso. Não com o sofrimento frio de um José Régio, entre antiqualhas e pulsões de uma alma incontinente. Fá-lo no seu peculiar estilo, como quem não quer mas diz, mas sem sarcasmo. Claro que já prometeu abandonar os livros, várias vezes. Mas está possuído. O demónio fazedor que o habita não o deixa ir, e ri-se às gargalhadas quando acreditamos que acabou.

Deus contra todos


O espaço só existe quando vivido, assim como a vida só existe enquanto sentida. Tudo o mais pode ser nada.
Kapar Hauser, ao virar as costas à torre onde esteve prisioneiro, sabe que desaparece esse espaço que foi o do seu confinamento. A sua inteligência superior porque incomum leva-o a essa suprema sabedoria ante a qual nenhuma lógica resiste. A grandeza do filme de Werner Herzog é a de ele ter construído uma obra extraordinária a partir de uma personagem que é a projecção do autor. O actor, Bruno S, esteve ele próprio internado durante dez anos num hospício para doentes mentais, por ser incapaz de aprender a falar. Tinha quinze anos quando fugiu dessa reclusão forçada e inútil. Viveu doze anos «entre fugas, hospícios, casas de correcção e prisões». Herzog conhecê-lo-ia e contratá-lo-ia como autor, este homem para quem é a representação e a vida se confundem.
O filme é «o grito terrível do silêncio»: Chama-se Cada um por si e Deus contra todos. Foi rodado em 1974. Estava ontem na Cinemateca.

sábado, 13 de março de 2010

A boina carlista, vermelha


Viva Cristo Rey, viva Cristo Rey
el grito de guerra que enciende la tierra
viva Cristo Rey, nuestro soberano señor
nuestro capitan campeon, pelear por el
esto todo un honor.

Tocar a reunir!


Viva a Maria da Fonte
A cavalo e sem cair
Com a corneta na boca
A tocar a reunir

La lutte finale


Debout ! les damnés de la terre
Debout ! les forçats de la faim
La raison tonne en son cratère :
C’est l’éruption de la fin
Du passé faisons table rase
Foule esclave, debout ! debout !
Le monde va changer de base :
Nous ne sommes rien, soyons tout !

C’est la lutte finale
Groupons-nous et demain
L’Internationale
Sera le genre humain.

Cara al Sol


Cara al sol con la camisa nueva
que tú bordaste en rojo ayer
me hallará la muerte si me lleva
y no te vuelvo a ver
formaré junto a mis compañeros
que hacen guardia sobre los luceros,
impasible el ademán,
y están
presentes en nuestro afán.

Primera linea de fuego


Si me quieres escribir, ya sabes mi paradero,
Si me quieres escribir, ya sabes mi paradero,
En el frente de Gandesa primera linea de fuego.
En el frente de Gandesa primera linea de fuego

O leitor

Ler, nem que seja num dia de sol, refugiado o leitor em sombras, ou num dia sombrio, em busca o leitor de uma luz e seu calor. Ler até enregelarem os dedos ou lacrimarem os olhos. Ler de mãos suadas e de costas doridas. Ler até não haver mais exterior, nem o mundo de todos os outros. Desfolha-se então o leitor, irado de razão, armado até aos dentes de ganas de viver.

Adolf, der Führer


Deutschland, Deutschland über alles,
Über alles in der Welt,
Wenn es stets zu Schutz und Trutze
Brüderlich zusammenhält,
Von der Maas bis an die Memel,
Von der Etsch bis an den Belt
Deutschland, Deutschland über alles,
Über alles in der Welt

Franz, den Kaiser


Gott erhalte Franz den Kaiser,
unsern guten Kaiser Franz!
Hoch als Herrscher, hoch als Weiser
steht er in des Ruhmes Glanz.
Liebe windet Lorbeerreiser
ihm zu ewig grünem Kranz.
Gott erhalte Franz den Kaiser,
unsern guten Kaiser Franz!

Usura, por Ezra Pound


With usura hath no man a house of good stone
each block cut smooth and well fitting
that delight might cover their face,
with usura
hath no man a painted paradise on his church wall
harpes et luthes
or where virgin receiveth message
and halo projects from incision,
with usura
seeth no man Gonzaga his heirs and his concubines
no picture is made to endure nor to live with
but it is made to sell and sell quickly
with usura, sin against nature,
is thy bread ever more of stale rags
is thy bread dry as paper,
with no mountain wheat, no strong flour
with usura the line grows thick
with usura is no clear demarcation
and no man can find site for his dwelling
Stone cutter is kept from his stone
weaver is kept from his loom
With usura
wool comes not to market
sheep bringeth no gain with usura
Usura is a murrain, usura
blunteth the needle in the the maid's hand
and stoppeth the spinner's cunning. Pietro Lombardo
came not by usura
Duccio came not by usura
nor Pier della Francesca; Zuan Bellin' not by usura
nor was "La Callunia" painted.
Came not by usura Angelico; came not Ambrogio Praedis,
No church of cut stone signed: Adamo me fecit.
Not by usura St. Trophime
Not by usura St. Hilaire,
Usura rusteth the chisel
It rusteth the craft and the craftsman
It gnaweth the thread in the loom
None learneth to weave gold in her pattern;
Azure hath a canker by usura; cramoisi is unbroidered
Emerald findeth no Memling
Usura slayeth the child in the womb
It stayeth the young man's courting
It hath brought palsey to bed, lyeth
between the young bride and her bridegroom
Contra naturam
They have brought whores for Eleusis
Corpses are set to banquet
at behest of usura.

São rosas, Senhor

«O nome do autor é um pseudónimo colectivo. O texto é fruto da colaboração de médicos, de esposos e esposas e de um moralista».O livro dirige-se aos noivos. Tem como subtítulo «O livro do marido» e como título «A intimidade conjugal». Assina-o «Pierre Dufoyer», sob cuja designação se editou também o livro da esposa, o da rapariga e o do rapaz. É uma tradução, com o imprimatur do Bispo de Coimbra, editado em 1947.
Pode ser lido em muitos registos, do burlesco ao compreensivo. Livro saído dos prelos de uma editora religiosa adivinha-se o conteúdo. Tem momentos inesperados, de informação directa e sem peias, instantes que fazem falta, de apelo à delicadeza.
Há, porém, algo de estranho e miraculoso. Escreva-se na pesquisa de imagens do Google, entre aspas, o nome que surge como sendo o do autor. Surgem rosas e mais rosas, como estas, lindas, viçosas, prometedoras. Hoje o dia está soalheiro e com ele a possível alegria de viver.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Bandeiras ao vento

Às vezes confunde-se se será ler ou rezar. Ou ambas as coisas com igual devoção. Tal como as bandeiras buditas os livros deveriam ser expostos ao vento, para que as suas palavras voassem e povoassem toda a terra.

terça-feira, 9 de março de 2010

O leitor cego

Encarquilham, engelham, ressecam. Entortados, retorcidos, anquilosados, mirram. Pulverizam-se, enfim. Enquanto resistem, vai-se-lhes partindo a lombada, cai aos pedaços a encadernação. Às tantas são tantos que já poucos os distinguem. Quando já não se consegue ler o título tornam-se anónimos, primeiro, invisíveis depois. São como um leitor cego os livros sem nome que se veja. Amarfanhados porque, todos lhe passam adiante, eles ansiosos que alguém pare, por um instante que seja, e lhes pergunte «como te chamas meu amor?».

sábado, 6 de março de 2010

Os determinantes e a vida


Quando Alice in Wonderland foi publicado, a Rainha Vitória graciosamente sugeriu ao Reverendo Charles Dodgson, seu autor, que o próximo livro lhe fosse dedicado. E assim foi. Só que o livro intitulava-se An Elementary Treatise on Determinants, um livro de matemática sobre  aplicação dos determinantes simultâneamente às equações lineares e à geometria algébrica. Este livro para quem quiser fazer o seu download e levá-lo para o cinema.
É por isso que aquilo a que chamamos o mundo real se transforma disto nisto. O que não necessariamente uma chatice. Ou como dizia a própria Alice: «But then, shall I never get any older than I am now? That'll be a comfort, one way - never to be an old woman - but then - always to have lessons to learn!»

O despertar sonhado

De repente uma pessoa tem a certeza de ter o livro. Não de ter tido mas de ter ainda. Procura-o. Tem muitos livros em casa, a maioria estão mais ou menos arrumados, por autores, sobretudo porque, por se gostar, se compram muitos livros de um mesmo autor, por vezes a rondar a obsessão literária.
Não está na estante onde deveria estar. Não está porém, e o porém é uma forma de uma pessoa se angustiar.
Nem na mesa de cabeceira está, porque há o ler deitado. Nem no chão o encontro ao lado da cama porque há leituras que nos cercam na cama. Nem na mesa que foi a das refeições e onde as refeições são num canto entre livros. Nem nas cadeiras que fazem de estante pois um dia eu haverei de arrumar isto. Nem em parte nenhum nem em qualquer lado ele aparece. Não o emprestei porque raramente empresto algumas vezes dou e não dei. 
De repente, muitos livros adiante, descobre-se um caixote de papelão com muitos livros. Estão lá todos aqueles e os outros, mesmo aquele de que não sentíamos a falta. Sentimo-la agora que os vemos e abraçamos.
Era este o vazio da alma, este o desconsolo do peito. Amigos meus, eram vocês. Qualquer coisa de ausente existia em mim. Na rua a chuva, amigável, parou por um instante.
De repente, despertada de um sonho, uma pessoa lembra-se do primeiro livro que nos leram. O amanhecer da infância surge-nos como manhã, a promessa de um novo dia.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Um poeta dinamarquês


Sim, têm tempo. Todo o tempo. É só questão de dormirem um pouco menos ou deixarem crescer as unhas dos pés. Amanhã podem ficar os sapatos por engraxar ou saltar-se aquele tempo que é o de coisa nenhuma. Vejam, ouçam, sintam. Agora mesmo. Um filme extraordinário, uma história pugente, contada por Liv Ullmann.

Là dove c'era l'erba ora c'e una città


Questa e' la storia
di uno di noi
anche lui nato per caso in via Gluck
in una casa fuori città
gente tranquilla che lavorava.
Là dove c'era l'erba ora c'e
una città
e quella casa in mezzo al verde ormai
dove sarà
questo ragazzo della via Gluck
si divertiva a giocare con me
ma un giorno disse: "vado in città"
e lo diceva mentre piangeva
io gli domando: "amico non sei contento?
vai finalmente a stare in città
là troverai le cose che non hai avuto qui.
Potrai lavarti in casa senza andar
giù nel cortile".
"Mio caro amico" disse "qui sono nato
e in questa strada ora lascio il mio cuore
ma come fai a non capire
che e' una fortuna per voi che restate
a piedi nudi a giocare nei prati
mentre là in centro io respiro il cemento
ma verrà un giorno che ritornerò
ancora qui
e sentirò l'amico treno che
fischia così.... ua ua".
passano gli anni ma otto son lunghi
però quel ragazzo ne ha fatta di strada
ma non si scorda la sua prima casa
ora coi soldi lui può comperarla
torna e non trova gli amici che aveva
solo case su case catrame e cemento
là dove c'era l'erba ora c'e
una città
e quella casa in mezzo al verde ormai
dove sarà
non so no so perché continuano
a costruire le case
e non lasciano l'erba, non lasciano l'erba
non lasciano l'erba
e non se andiamo avanti così
chissà come si farà
chissà chissà come si farà.

Adriano Celentano

Uma história de dor

Nem todos são escritos em papel. Esta manhã visitámos um, gravado escrito em metal, espraiado por linhas cobreadas, erguido ao céu.
Redigido a carvão, memória de sofrimento e de corpos esgotados, são capítulos de exploração, de revolta surda, vagonetas e pá, escória e escadas, livro de um passado industrial hoje museu. Um pouco adiante a cidade hoje diverte-se, nas docas. Sepulta-se ali um mundo que foi.
Ficou-me este rosto, um esgar de pulmões incendiados pelo calor, a caldeira incandescente a sua insaciável companhia, horas a fio alimentando-a, a fonte do seu pão. O fogueiro.
Nem todos os livros são escritos em papel. Pelas chaminés, anos a fio, foi-se em fumo uma história de dor.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Uma língua inútil

Já tinha falado dele. Voltei às suas páginas. Estive em Macau quando se lançou o bilinguismo como política oficial para que a língua portuguesa perdurasse na Administração chinesa, após 1999, língua oficial ao lado do chinês. Forçou-se a barra a preço de ouro. Na altura nem os polícias na rua compreendiam português. Nos táxis batiamos no ombro direito ou esquerdo do motorista sinalizando-lhe para onde virar, o destino escrito em papelinhos em caracteres que pareciam gaiolas de passarinhos mas eram hierogrifos.
Terra de maledicência mesquinha, um espírito irrequieto apodou de bifidismo essa tentativa de pôr toda a gente a falar duas tão distantes línguas. Dos portugueses só uns tantos poucos se deram ao esforço. Enfim havia os intérpretes.
Sentia então por ouvir dizer o esforço que para aquelas crianças chinesas significava aprenderem o cantonês local, o mandarim oficial, o utilitário inglês e o impingido português.
Natividade Ribeiro ensinou em Macau durante vinte anos. Escreveu um livro frágil de sensibilidade, um livro que se esfarela entre os dedos, porcelana literária. A sua personagem, Ana Costa, sofre em Macau o amor de ali viver, «num lugar onde as pessoas viviam num mundo de paralelas infinitas», ensinando português a alunos para quem isso era «uma língua inútil para as suas vidas».
Uma edição de Livros do Oriente, dirigida por Beltrão Coelho. Magnífico.

Raivoso de incerteza

Veio do neo-realismo e por isso tem lugar cativo no Museu do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira mas, atenção, apenas em relação às suas primeiras obras. Com o romance Mudança mudou de rumo. Nessa altura, como conta no seu Diário Íntimo, estava em luta intestina com a personagem que nesta terra teve como nome Sartre e por isso num certo dia de Agosto, em Melo, sua terra natal, escreveu, furibundo: «Amigo Sartre mete uma enxada nas unhas aos teus pederastas, aos teus vadios de café, põe-me essa Ivitch a lavar roupa, a roçar o soalho da casa, dá-lhes a todos para roerem, um corno de realidade. E conta-me depois». É Vergílio Ferreira, claro. Irado de dúvida, raivoso de incerteza.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Irremediavelmente

Surgem como cogumelos em dias de chuva, como flores ao raiar do sol. E depois vão-se, porque o contrato com os distribuidores é assim e porque abrem vaga para novos corpos nos escaparates, como nos cemitérios as vagas sucessivas de cadáveres, a sucederem-se, exceptuados os dos jazigos, que na Literatura se chama «os clássicos».
São os livros que já não se encontram porque foram devolvidos e são guilhotinados depois de uns anos sem esperança de venda. Livros que alguma biblioteca particular retenha, ou salvos do esquecimento pelo depósito legal que lhes dá coval garantido na Biblioteca Nacional e outras tantas que são armazéns em nome da Lei.
Livros como o Largo da Memória de Homero Serpa. Onde encontrei esta noite esta linha sublinhada a propósito dos pretendentes da Susana e do sentimento que isso provocava em Domingos, «deixando-o escorregar pelo clivo da ingenuidade até se estatelar no irremediável».

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Uma língua de rosas

Haverá uma gramática da fome e da opulência, uma morfologia da necessidade e do arroto? Haverá uma pobreza vocabular que mostra o mendigo por pão verbal, raivoso ante a ostensividade glutona do delambido em doçarias de conjugação?
Haverá, em suma, prontuários como palmatórias para os incorrígíveis da improvisão, formas únicas compendiais que só com mnemómicas se interiorizam, lêem e vêem com dois ee, como dois olhos, peru sem acento no ú?
Haverá forma de consensualizar a forma de virgular, um tratado de paz quanto ao ponto final sem ser parágrafo?
Haverá uma luta surda, forjada com bombas de gralhas e petardos de erros contra os pretéritos mais que perfeitos, um atentado revolucionário contra a voz passiva?
Talvez não haja, como não há beleza máxima que não seja assimétrica, amor fantástico que não seja um só.
Nisso da língua, a regra é não haver.
«Se leu o Apocalipse sabe que até Deus vomita os mornos». Escreveu-o Miguel Torga, escrevendo à podoa, com ela talhando rosinhas miúdas de uma língua eriçada de espinhos.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Mundo intransitivo

Lembrei-me dela porque mão amiga me fez chegar este link sobre um portal da língua portuguesa, agora que com o chamado Acordo Ortográfico começo a ter fundadas dúvidas sobre o que seja a língua portuguesa. Ensinava a língua de Portugal a meninos de Macau. Tentava entender-se com o que seriam erros europeísticamente falando. Às tantas já nem sabia se seria capaz de falar a sua língua.
Escreveu um livro de pequenas histórias. Numa delas a professora recebe uma redacção que dizia achinesadamente «amanhã vou passear, vou brincar, vou jogar, vou comprar». Assim mesmo com o verbo comprar conjugado intransitivamente, para além de qualquer ditame da gramática.
Está certo. Nós quando vamos às compras compramos ou não compramos, o ir às compras é por vezes a oportunidade, comprar um pretexto. Eles quando vão comprar é mesmo para comprar, tal como quando se joga joga-se, quando se brinca brinca-se.
A minha Pátria é, de facto, a Língua Portuguesa, mesmo na longínqua China que nos redescobre.
Chama-se Natividade Ribeiro, o livro tem por título Nada, nada professora.

A sombra

«Um romance é como um biombo, a gente despe-se por detrás». A frase foi escrita pelo Vergílio Ferreira. Escrevi isto depois de emendar, pois ia a escrever «a frase pertence ao Vergílio Ferreira». É assim, ficamos com a ideia de que uma vez lançada uma frase ela fica a pertencer a quem a delineou, como uma sombra que lhe seguisse o vulto.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Belle du Jour


Em Belle du Jour todos os homens são nojentos, todas as mulheres putas. Passados estes anos o filme surge inevitavelmente datado. Une femme de societé que se prostitui sem razão, uma frígida que a violência erotiza, um marido cuja complacência faz de amor e no final ressuscita parece que oniricamente. Ah! E o aflorar de um beijo entre ela e a «patronne». Freud e Sade em versão bistrot.
O cinema francês torna-se irritante quando é petulante. Nele, por vezes, as pretensões intelectuais são uma forma de ser afectada e maneirista, tal como a sua fonética feita de ditongos labiais. É preciso pachorra. Houve um tempo em que o ridículo tinha iluminação feérica, como a Place Pigalle.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

A Revolta das Palavras

 
Um país governado por um homem de quem se pode dizer que é um mentiroso é um país ignominioso, tanto por ser dirigido pelo que mente, como por aqueles que o deixam continuar a mentir. Ressuscitei o blog A Revolta das Palavras. Não era possível continuar calado.

O herói absurdo


Uma coisa boa é não saberem em que dias e a que horas escrevemos, para não devassarem as nossas horas de sono, os tempos de trabalho, os instantes de coisa nenhuma.
Uma coisa excelente é não ter obrigação de escrever nem dever de ler, estar-se livre da sujeição de se escrever sobre o que se leu.
Aconteceu assim aqui, uns dias sem justificação para não ter escrito. Se fossem férias seriam umas magníficas férias, se fosse uma gripe uma gripe e peras [pergunto-me porque se diz qualquer coisa «e peras»], se não fosse nada era coisíssima nenhuma.
O resultado está à vista. Os que não são leitores assíduos nem dão conta, os outros voltarão quando puderem.
Finalmente uma coisa extraordinária é não ligar ao sitemeter, não ser importante quanto leitores há.
Quando se está uns tempos inactivo o número de visitas desce. Haverá de subir. É e lei do eterno retorno, o fundamento da tragédia de Sísifo, o último herói absurdo.
É preciso imainar Sísifo feliz!

domingo, 14 de fevereiro de 2010

O silêncio

Médica, irmã creio de Maria Gabriela, Maria Isabel LLansol Barata escreveu Vida em Letra Grande. Foi editado em 1995 pela própria.
Não são grandes sentimentos pela sua extensão declamativa, grandes sim pela sua discreta interiorização. A vida não é feita só de proclamações sentimentais.
Li-o esta manhã, recolhido, o dia gélido. É um livro meigo, diário de momentos ternos, de uma mãe internada num lar, doentes que se apegam ao seu médico, o apartamento no Monte Estoril cada vez mais vazio, «a companhia, por motivos város, até estranhos à vontade, a tornar-se menos disponíveis», uma anónima Paula que, entre riscos e palavrões, escreveu no pára-vento da paragem do autocarro «Falar é fácil, difícil é compreender o silêncio». Foi no dia 2 de Fevereiro de 1989.

Poeticamente exausto, verticalmente só

Tive-o, perdi-o, ficou numa qualquer casa, daquelas em que coabitamos e por vezes só não ficamos nós quando cessa a coabitação. Rasgou-me o peito lê-lo então porque morreu aos vinte e três anos numa guerra que eu não quereria fazer, porque tudo nele prenunciava esse saber dorido de que a vida o iria matar. Esta noite encontrei a frase e soube que há um filme que eu perdi como se perdeu o livro e não fosse este milagre se perderia a lembrança:

«...poeticamente exausto, verticalmente só... lembro memória dum qualquer verão em nenhuma parte. Percorro o suor dos mortos. Acabo em cada boca que começa. E como os mortos suaram antes da guitarra de barro! Kid, companheiro antiquíssimo: pergunto: o desespero já foi jovem? Quem doará seu rosto ao trigo da aurora? Quem, quando a areia crescer nos olhos, resolverá a rosa marítima? ESCREVE! Nada sei da mulher que possuiste em casa da Lena. Sei somente das jovens que a cidade digeriu... Sei todas as cidades do nocturno mapa do esquecimento...


P.S.: Sou aspirante. Não me chames alferes. Sim, não me promovas»


ao Francisco

Agosto de 1963

Mafra

Farewell



Era em vinil, com uma capa em tons de camurça. Ouvi-o vezes tantas que quase sabia de cor cada um das notas de todos os temas. Tudo isso desapareceu. Pouquíssimos se lembram. Encontrei-o aqui. São os Fairport Convention. A voz é a de Sandy Denny. Eu já tive vinte anos. Foi em 1969.

Farewell, farewell to you who would hear
You lonely travellers all
The cold north winds will blow again
The winding road does call.

And will you never return to see
Your bruised and beaten sons
O I would,I would if welcome I were
For they loathe me every one.

And will you never cut the cloth
Or drink the light to be
And can you never swear a year
To anyone but we.

No I will never cut the cloth
Or drink the light to be
But I'll swear a year to one who lies
Asleep alongside of me.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

O Império Contra-Ataca



Tinha-me esquecido do sobretudo. Estavam quarenta graus abaixo de zero. A URRS já não era. Na Lubyanka já tinham apeado o Derzhinsky, da Cheka, a antecessora do KGB. A Casa Branca russa ainda não tinha sido bombardeada. Só mais tarde fui ver o Ermitage a casa do Gorki que estava fechada. Com Lénine a questão fora o Estado e a Revolução, agora era só o Estado, em degradação. Há sempre um tempo para cada lugar. Atenção por isso, que há surpresas para um leitor: há uma Moscow no Idaho, USA. O Império contra-ataca.

Terra: por mais distante o errante navegante



Foi há tantas anos, em Itália, não sei onde na Itália creio que numa das ilhas que são Itália. Foi num hotel. Havia um grupo musical que animava os hóspedes. Um grupo de italianos. Souberam, não sei como, que eu era português. Pediram-me então: que eu tentasse com base no que eles cantavam de ouvido, que lhes escrevesse a letra desta canção e lha traduzisse, para que entendessem enfim a beleza do que cantavam, extasiados, sem entenderem uma só palavra. Escrevi, lado a lado com eles, eles soletrando musicalmente eu esgravatando, prosaico. Não mais me esqueci dessa noite. Quando subiram ao palco um sopro de alma elevou-lhes a voz. Vogando no planeta Terra, anichados em torno de um sentimento, vogámos no espaço sideral, irmãos.


Quando eu me encontrava preso na cela de uma cadeia
Foi que vi pela primeira vez as tais fotografias
Em que apareces inteira, porém lá não estava nua
E sim coberta de nuvens

Terra, Terra,
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

Ninguém supõe a morena dentro da estrela azulada
Na vertigem do cinema mando um abraço pra ti
Pequenina como se eu fosse o saudoso poeta
E fosses a Paraíba

Terra, Terra,

Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

Eu estou apaixonado por uma menina terra
Signo de elemneto terra do mar se diz terra à vista
Terra para o pé firmeza terra para a mão carícia
Outros astros lhe são guia

Terra, Terra,
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

Eu sou um leão de fogo, sem ti me consumiria
A mim mesmo eternamente, e de nada valeria
Acontecer de eu ser gente, e gente é outra alegria
Diferente das estrelas

Terra, terra,
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

De onde nem tempo e nem espaço, que a força mãe dê coragem
Pra gente te dar carinho, durante toda a viagem
Que realizas do nada, através do qual carregas
O nome da tua carne

Terra, terra,
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

Na sacadas dos sobrados, das cenas do salvador
Há lembranças de donzelas do tempo do Imperador
Tudo, tudo na Bahia faz a gente querer bem
A Bahia tem um jeito

Terra, terra,
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Rebel, Rebel


Esta noite ensinaram-me a meter youtubes aqui. E eu, que julgava saber tanto, não sabia isso. Aproveito para deixar por aqui artes e letras, humanidades e até alarvidades, numa explosão panteísta de alegria, entusiasmo e força de viver. É o país das maravilhas...

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Em forma de assim...

Quem é que se lembra disto? Quem se recorda do efeito de relevo que impressionava a vista? Quem rememora o passa-passa, imagem a imagem? Quem diz como se chamava? Quem ainda tem disto num qualquer sótão, num canto do guarda-fatos? Quem sabe que a maquineta por cujos dois óculos se espreitava era em baquelite? Quem sabe o que é baquelite, aquela resina química resistente ao calor?
Quem me ajuda porque há um mundo ido de singelezas ópticas que nos davam a ilusão de termos sido felizes vendo paisagens em forma de assim?

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

O tempo das cerejas

É uma obra de militância, não só política sendo o autor quem é, mas sobretudo cultural. Em cada esquina um amigo, em cada recanto uma surpresa. O blog chama-se O Tempo das Cerejas. O seu autor Vítor Dias. Está aqui. Fomos contemporâneos na Faculdade. A vida separou-nos. Encontrei-o este começo de manhã, lendo-o.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Gymnopédie

Foi este domingo no hall junto à Biblioteca do Museu da Fundação Calouste Gulbenkian, que nem todos conhecem nem sabem que tem o espólio de Alfredo Pimenta. Joana Gama tocou Eric Satie. Um maravilhoso silêncio inundou o espaço, contraiu as almas. Sincopada, minimal, magnífica, a música encheu os corações. A Gymnopédie, n.º 1. Eric Satie nasceu em 1866. Ouvindo a sua obra parece que a eternidade foi hoje.

O autor e a sua cria

É seguramente um labirinto de sentimentos e de vivências; é essa complexidade que talvez permita chamar-lhe um romance. Mereceu ontem uma menção crítica no jornal Expresso. Citei-a, aqui. A autora da recensão é a Professora Helena Barbas. No mesmo dia o poeta Nuno Júdice apresentou-o livro em Faro.
Mentia se não dissesse que isso traz alegria. Um autor gosta da sua obra e por isso consente na sua edição.
Eu sei que no mundo dos escritores ninguém pensa assim. Deveria fazer de conta que não li a crítica e que não fiquei feliz por ser muito amável, para poder fingir ignorar quando vier bordoada de meia-noite ou aqueles silêncios que desanimam. Mas sou este e não aquilo.
Ontem descobri-lhe uma gralha, ao livro tantas vezes revisto: um «fui» em vez de foi. Um pequeno sinal de imperfeição mostra a fragilidade no escrito. Oxalá ninguém dê conta.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

No tempo da outra Senhora...

Só não tem o Anuário da RTP de 1964 quem não quer. Por seis euros trouxe eu um para casa, sacado de uma livralhada de adelo. O curioso foi lê-lo num bocado de noite e verificar que no tempo do outro senhor a RTP emitia em média 6 horas e meia por dia, fechava à meia-noite e que, no cômputo geral desse tempo foram 73 horas de teatro, 119 horas de filmes de grande metragem, 38 horas de programas musicais eruditos e 212 horas de programas culturais. As receitas da casa eram 86 380 contos, a despesa 78 129. A televisão do Estado dava lucro. O número de empregados, 794. O Presidente do Conselho de Administração era o Dr. Luiz de Athayde de Almeida Vasconcelos Pinto de Mascarenhas. Quem se lembra hoje dele e daqueles números? Só mesmo quem arriscar seis euros num alfarrabista!

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Alma ressuscitada

Um pouco mais contido na adjectivação, é o mesmo Luiz Pacheco, o de sempre, a lembrar-nos os seus Textos de Guerrilha, editados em 1979, livro onde conta a lista dos ilustres artistas convidados pelo então Presidente da República para um jantar no Palácio de Belém. Só que com um pormenor provocatório: o Venerando anfitrião era o almirante Américo Tomás, que o 25 de Abril apeou de Presidente; o convidado o cineasta Manuel de Oliveira [mais tarde crismado como Manoel de Oliveira] o mesmo que, provocatoriamente também, em Non ou a vã glória de mandar, ligaria o 25 de Abril a Alcácer Quibir. Aparte fantástico: no filme Conversa Acabada o realizador João Botelho mascara o Pacheco como Fernando Pessoa «moribundo e logo esticado, com o Manoel de Oliveira, padreca, a rezar-me o responso, num latim esgosmado». É caso para dizer, «alma encomendada, alma ressuscitada».

O Piruteante Anefim

Durante uns meses mantive no Jornal de Negócios uma crónica. Atenção: o Luiz Pacheco também! Esta noite encontrei uma delas em que «ainda a propósito de Afonso Lopes Vieira escrevi: «lembro-me de um episódio contado por João Gaspar Simões no seu livro “Retratos de poetas que conheci”, saído com dedicatória a Manuel Poppe, em 1974. O monárquico Paiva Couceiro havia sido preso pelo regime político que o autor de “Onde a terra se acaba e o mar começa” mais desprezava. Surpreendendo apenas quem o não conhecia, aquele cuja aparência de “piruteante anefim” – as palavras são de Gaspar Simões – iludia quanto à sua viril coragem cívica, não hesitou. Afonso Lopes Vieira “de malinha aviada se apresentava na esquadra de polícia onde Couceiro fora arrecadado, e atrevido perguntava à sentinela: - É aqui que se prendem pessoas de bem?”.  Por um triz tornaria dessa feita verdadeiro um verso seu cáustico e premonitório e de que fez orgulhosa bandeira: “o poeta português que não passar ao menos uma vez pelas prisões, não será digno aluno de Camões”». Foi em Setembro de 2003 aquele meu escrito. Como o tempo voa!

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A excepção e a regra

Hesito sempre em usar os meus espaços para falar das minhas coisas. E haja quem explique este atavismo. Talvez não pareça que isso é assim, porque escrevi um romance e dei aqui notícia dele; apresentei-o ao público e ficou aqui notícia do facto. Além disso na lateral deste blog está menção aos livros que escrevi e a uma editora que decidi criar.
Há, porém, algo que estas referências omitem: a dúvida com que tudo isso acontece, talvez um pouco menos do que um sentimento de pudor.
Desta vez a mesma sensação ao anunciar que vou a Faro porque o Nuno Júdice apresenta aquele romance que é a minha estreia no género.
Haveria razão para que eu não o dissesse? Talvez não haja. Tenho vergonha? Não, tenho orgulho. Devo alguma coisa a alguém? Só aos meus credores. Porque vim aqui escrever isto? Porque cada vez que falo de mim penso sempre que há o risco de quem lê pensar em outra coisa.
Blog de leitores, este, acho, enfim, que ele pode ser também das coisas que leio por tê-las escrito. Não como excepção, mas por haver uma regra geral.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

A transmutação

As palavras rituais do catecismo alquímico de Paracelso são semelhantes às da sessão de abertura em loja maçónica, pelo menos no Rito Escocês Antigo e Aceito. Com uma diferença notável. À perguntal «que idade tendes irmão primeiro vigilante?», feita pelo Venerável Mestre, que como resposta obtém «três anos, Venerável Mestre», sucede aqui, no fecho da obra, o diálogo: «qual é a idade do Filósofo?», «desde o momento das suas investigações à das suas descobertas, o Filósofo não tem idade».
Phillipus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, conhecido como Paracelso, nasceu em 1493 na Suiça. Médico, químico, sábio, morreu aos 47 anos julgando ter encontrado o exilir da vida, meio para a eternidade.
O método é a procura da purificação interior através da busca da virtude intrínseca, segundo a condição natural de cada um. Eis a trasmutação filosófica. Sê a Natureza.