terça-feira, 25 de abril de 2023
A circunstância do acaso
sábado, 11 de março de 2023
Alma clarividente
domingo, 24 de julho de 2022
Amélia
domingo, 19 de junho de 2022
Fernando Pessoa: o tema do outro
terça-feira, 19 de abril de 2022
Noite onírica, enlanguescente
Li "O Barão" e já não fui capaz de ler os dois contos que com esta novela completam o livro. Edição pobre, papel amarelecido, formato bolso, corpo felizmente largo para ajudar à leitura, o que não seria necessário porque neste fim de tarde de Domingo comecei e consegui chegar ao fim ansioso por regressar. E leio pausadamente.
A escrita é torrencial na sua cadência por locais oníricos, a cena em crescendo de enigma a ter o seu epígono numa noite alcoolizada, a trama a crescer e sem caminhar definido por onde segue, viagem em busca da memória do amor idealizado, o amor retraído.
O que seria a narrativa de uma visita oficial de um sorumbático inspector escolar a uma remota aldeia pelas terras do Barroso dá um viagem fantasmagórica pelo enigma e pela luxúria, longos corredores vazios e seu silêncio, o solar decadente onde a vida de há muito decaiu, correrias pelos esconsos do medo e enfim, a queda e a fractura, a morte, os caminhos sombrios do sonho e da loucura, o barão carnívoro insaciado, a desbragar-se em aviltamento e afinal em sofrida carência de companhia.
António José Branquinho da Fonseca, filho do escritor Tomás da Fonseca. Licenciou-se em Direito mas foi do mesmo escasso praticante para além de funções públicas a desaguarem, porém, no serviço cívico a que deu vida, o das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian que tanta oportunidade deu a que se lesse onde, ao tempo, a leitura não chegava.
Fundara a "Presença", dela sairia com Miguel Torga. Ao chegar à Fundação em 1958 não mais publicaria. O seu livro "Bandeira Preta" é de 1956.
Dir-se-ia que o escritor se sublima aqui e se redime do pecado do convencional.
A capa do pequeno volume, desenhada em boleadas curvas languescentes, não vem assinada e é pena. Está ali, num traço, a lascívia do lugar e a que caminha ondulante e deixa atrás de si o momento de silêncio: Idalina, serva e dona, um breve instante, a ambiguidade provocante do quase.
domingo, 23 de janeiro de 2022
Irina Ostrakoff
Os que supõem que eu leio muito ignoram quanto eu já deveria ter lido. Sucede assim com a obra de Rodrigo Leal de Carvalho, que agora iniciei a partir do seu "Requiem por Irinia Ostrakoff".
Conheci-o em Macau, há mais de trinta anos, fomos inclusivamente vizinhos no início da minha estadia naquele território.
Amável, cerimonioso, a natureza das funções que cada um de nós desempenhava, ele Procurador-Geral Adjunto, pôs-nos em contacto oficial em circunstâncias que decisivamente não vêm ao caso.
Não o supunha sequer escritor, mas para ter disso uma vaga percepção seria necessário que a minha vida então fosse outra que não a do cargo para que tinha sido nomeado, e, talvez mais ainda, se esse cargo não tivesse criado, ou eu por causa dele, um fosso entre a minha pessoa e o que não eram funções oficiais. Enfim, tudo lamentável, tudo um erro, tudo em nome de uma funesta ilusão, tudo a atulhar-me de recordações desinteressantes, uma lamentável selvajaria.
O Macau que haveria para conhecer, logo por exemplo, o do seu editor, o Rogério Beltrão Coelho e sua mulher Cecília Jorge e tantos outros que se dedicavam à Cultura, tudo isso eu perdi então.
É com este sentimento nostálgico de inútil arrependimento, impossível a procura do tempo perdido, que terminei, lido aos poucos como só me pode suceder, este seu magnífico livro.
Leal de Carvalho é exímio na arte de contar, um relatar cinematográfico, logo a prender o leitor com a cena de abertura, em que, a inventariar-se os míseros haveres da falecida Irina, se pressente que, envolto no acto, o representante do Ministério Público é seguramente o narrador e por esta via o próprio autor. A partir dali, num tão recordatório ambiente de humidade quente e pegajosa , o ar irrespirável, prossegui para a história daquela ucraniana de vida aventurosa, a ser esgotada desde a revolução bolchevique em 1917, e com ela o exílio para Paris, e despois em permanente viagem, ante o advento do maoismo, pressentido em Xangai, tudo do remedeio à opulência e dali à sordidez, a decadência encapotada pela aparência.
Escrita culta, rica nas referências do contexto histórico em que tudo se move, é também escrita de requinte e de ironia refinada; escrita sensual também, em que a presença carnal nos surge envolta no véu da delicadeza do modo de a convocar.
É também uma escrita bondosa, feita de generosidade compreensiva para os pecados menores, fruto de uma atenta e minuciosa observação dos humanos e das circunstâncias, tantas vezes penosas, em que lhes é dado suportar. O mundo surge-nos ali, como se visto do lado do rodapé da vida, como se a ascensão da rampa que leva aos salões fosse tão efémera quanto a visita, a convite, a um clube exclusivo porque privado.
Vou ler mais, isso em nome de um princípio de que fiz regra, sopesando também o tempo que já se foi: já que leio menos do que devia e do que se supõe, lerei muito do que gosto, nada quase do que suponho não vir a gostar. E não digam que é mundo sem novidade: a haver surpresas, venham as que nos são familiares e são assim já parte do nosso modo de ser.
sexta-feira, 31 de dezembro de 2021
O Leopardo
«Tenho setenta e três anos, por alto terei verdadeiramente vivido, um total de dois...três anos no máximo», eis a nostálgica constatação de Don Fabrício, ele que «havia dezenas de anos que ele sentia o fluído vital, a faculdade de existir, a vida, em suma, talvez até a vontade de viver, desprendendo-se de si, vagarosa mas continuamente, como os pequenos grão de areia que escorrega, um a um, sem pressa e sem detença, pelo estreito orifício da ampulheta». Era Julho de 1883.
Cito este excerto de "O Leopardo" de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Um clássico, dos que eu deveria ter lido há imensos anos mas não li, cuja leitura só consegui completar entre breves intervalos, os que foi possível, cuja narrativa não segui, pois nunca sigo, mas cuja paisagem humana, a geografia sentimental, ficou como uma viagem que fizesse pela sua Sicília e já a fiz há tantos anos de que apenas recordo o que leitura retorna agora como reminiscência, terra de «um sol violento e impudico, um sol narcotizante que anulava as vontades e mantinha todas as coisas numa imobilidade servil».
"Il Gattopardo" é, para além de uma estupenda obra romanesca, um momento em que se surpreende a História da unificação italiana, a ascensão de Garibaldi, o triunfo de uma nova ordem por sobre a decadência da velha classe social, cenário de contrastes, de interesses mascarados de ideais, em que «o ciúme pessoal, o ressentimento do beato contra o primo sem preconceitos, do pateta contra o rapaz inteligente, haviam-se transformado em argumentos políticos», em que «ele havia chegado à conclusão que a aristocracia era constituída por um conjunto de homens-carneiros, cuja existência se justificava somente pela lã que ofereciam às tesouras da tosquia e pelo nome»
Por ali perdida - na página 35 de velha edição portuguesa, que foi a que me serviu, editada em 1961 pela Bertrand, a frase «se queremos que tudo fique como está é preciso que tudo mude», tantas vezes adulterada e imputada a outros.
É sobretudo um livro carregado de observações irónicas, elegantes na forma, mesmo quando cáusticas na substâncias, de uma categoria senhorial que é de um tempo já morto. A cuidadosa tradução de Rui Cabeçadas mantém-nas incólumes.
Pululam pelas suas páginas personagens risíveis como o «homenzinho seco que escondia a alma de liberal ambicioso e rapace por detrás de uns óculos tranquilizadores e de gravatas imaculadas», ou outro «que praticava as próprias ladroeiras convencido de exercer um direito», o ainda o sacerdote, Padre Pirrone que «se sentava num canto, assumindo o ar marmoreamente abstracto dos sacerdotes que não querem pesar nas decisões alheias».
Talvez para esta viragem do ano, esta leitura, terminada já há semanas, adiada a vinda aqui anunciá-la, seja recordação simbólica. Sem obra prévia publicada, nem posterior, o autor, Príncipe de Lampedusa, iniciou a escrita deste seu livro aos 60 anos.
sábado, 18 de dezembro de 2021
De maneira que é assim
Mário de Carvalho é advogado e escritor, diria escritor apesar de ser advogado. Não que na profissão forense não se recrute uma plêiade significativa dos que se dedicaram à escrita e à edição. Entre os primeiros lembro, por exemplo, Rodrigues Miguéis, dos segundos recordo, exemplo também apenas, António Alçada Baptista. Só que as condições em que hoje se advoga por causa delas tudo converge para que quase não sobre tempo, nem estado de alma para que a escrita tenha oportunidade de surgir.
Confesso que li muito pouco de Mário de Carvalho, mas há sempre tempo de emendar a mão. Não digo que tenha começado por este livro, sucede é que terei de reler outros seus para me recordar da leitura pretérita pois, como em mim, já é natureza, há muita leitura que suponho nova mas, ante os sublinhados e por vezes as notas marginais, verifico que mais do que ter já lido, tinha pensado quanto lera e ruminante.
Li, pois, estas suas memórias dispersas, o livro aqui a meu lado.
Há nelas muito de política, de quem foi militante comunista e em cujo ser essa vivência ficou indelével qual sacramento indissolúvel. O tempo da clandestinidade está ali retratado, temperado com a ironia crítica mas nunca como repúdio. A militância nasce-lhe no sangue como se pressente na apontamento "O dia em que levaram o meu pai", «a altura das perguntas de fundo, que eu nunca havia feito», segue-o com os cuidados conspirativos, os «pontos de apoio», a que se chegava com a consigna «põe os olhos no chão», as "tarefas" que, decididas pelo "colectivo" chegavam através do "funcionário", cujo nome se ocultava pela da sua função.
Mas o livro não se fica por aí. Proliferam apontamentos da Lisboa aldeã, essa aldeia feita de vizinhanças, a Penha de França, a Senhora da Glória, a Rua da Graça, o Forno de Tijolo, Sapadores, o Cinema Royal, os domingos, porque «domingo sem piquenique não era domingo não era nada».
Leio em muito do que ele escreveu a memória dos mesmos lugares que foram meus, sem, porém, a substância do que para ele significaram e tornam hoje estes "relances" escritos "ao correr da pena", linguagem comum, familiaridade, como se companheirismo sem camaradagem.
«Oxalá nos encontremos, caro leitor», escreve no seu breve e tímido prefácio. Aqui estou, meu caro, com este breve apontamento. Ainda bem que o Ernesto Rodrigues levou as suas cópias "gatafunhadas" ao João de Melo e assim se iniciou com os "Contos da Sétima Esfera".
Prometo ler mais, começando assim pelo aquele seu princípio.
domingo, 22 de agosto de 2021
A larva racionalista
Romeno, Constantin Virgil Gheorghiu estudaria filosofia e teologia em Bucarest e Heidelberg. Por ter servido como Secretário de Embaixada durante o regime do Marechal Antonescu, seria preso ao terminar a 2ª Guerra quando as tropas soviéticas ocuparam o seu país natal.
Rumaria a Paris e publicaria aí o que é a obra pela qual é mais conhecido, "A 25ª Hora" [título original Ora 25] uma denúncia dos totalitarismos. Em 1963 seria ordenado padre da Igreja Ortodoxa.
Li este livro na edição original. Foi escrito em 1956 e a Bertrand publicou-a em 1957, sem data de edição, com tradução de Maria Isabel Cunha Dias Miguel e dele tiraria uma segunda edição em 1970. Foi-me difícil trazê-lo aqui por não achar modo de o dizer.
A narrativa comove, ferindo por vezes a sensibilidade. Pressente-se na leitura algo de autobiográfico neste professor romeno a viver na Bulgária, dividido entre a obediência devida às autoridades locais do País estrangeiro onde presta serviço e o dever humanitário de salvar quantos possa da violência feroz do ocupante a que o País se rendera, subserviente, qual código de honra de marinheiro ante naufrágio e «há na Bulgária, na Roménia, mais pessoas que se afogam na terra do que no meio do oceano em plena tempestade».
A narrativa ocorre na Bulgária e na Roménia já sob o domínio soviético, trazendo para a Literatura a experiência vivida pelo autor.
«José Martin era agora professor na Universidade de Sófia e director do Instituto de Antropologia Búlgara». O seu trabalho, financiado por um "Instituto de História Natural dos Estados Unidos" era «medir, pesar, fotografar, penetrar nos segredos da vida e da alma» de todos quantos na Bulgária pudessem ser assim inventariados, por ser a Bulgária tida pelos americanos, como um dos povos "atrasados", como «as tribos negras da Austrália, os Esqimós, canibais, a Grécia, os Pigmeus, as tribos indianas, a Roménia, a Índia».
Há nisto uma amarga ironia e um substrato antroposófico racial que a narrativa vai tornando presente através da estonteante imaginação do autor, o da aniquilação da pessoa pela colectividade, o ar irrespirável que se vai acumulando ao longo das duzentas páginas deste meu exemplar de folhas tão oxidadas pelo tempo que passou.
Livro em que está presente a expiação da culpa, a culpa pela incapacidade de salvar na terra aqueles que os homens condenaram, há, a perpassar a escrita, a tragédia existencial entre o místico e o racional, este como opressor, aquele como salvífico, a danação do Homem sem transcendência,: «um místico, um homem que tem fé, pode libertar-se do pecado. Um homem lógico leva o pecado até à morte».
É seguramente uma obra de empenhada denúncia, mais do que a sorte dos seres humanos que, quase vultos, povoam as suas páginas, o destino cruel a que os arranjos da 2ª Guerra condenaram aqueles povos: «Os senhores entregaram aos Russos os Romenos, os Búlgaros, para salvar Roma, Paris, Londres. Entregaram-nos aos Russos no decurso das vossas conferência de Teerão, de Yalta, de Potsdam», em que o cinismo da diplomacia tenta convencer-se, em conveniente hipocrisia moral, de que os novos tempos trazem a oportunidade da convivência pacífica, e do compromisso, cómodo e utilitário modo de vida entre os Estados, regra de vida do Embaixador romeno que, não por acaso, tem como nome "Pilatos", em alegoria ao Pilatos bíblico que, assim o autor no-lo apresenta, na Última Ceia, tinha já o cheiro do Estado «tinha concluído a aliança com a Polícia».
Relato de um universo de aprisionamento, de mimetismo, em que «todos os homens têm um rosto semelhante», mundo de rendição, de seres que, tocados no ombro, levantam os braços e gritam, apavorados, «rendo-me!», rendição pela qual ansiavam, ansiosos de desistência.
Há em tudo quanto li, e li tudo, o que creio ser a mais conseguida faceta deste modo de escrever, a figuração do verme, "racionalista" porque apenas pode viver no cérebro do Homem, que «com o cérebro cheio de vermes o Homem não deseja na vida senão a "pequena lógica", a quotidiana, instrumental para a sobrevivência imediata, mas mutante «que deixe de ser válida de um dia para o outro».
A "larva racionalista" que faz aquele em que foi feita penetrar «perder primeiro a alegria. Depois perde a tristeza. Nunca mais está alegre nem triste. O verme racionalista devora em seguida outro segmento do cérebro, o Homem fica sem nenhuma espécie de ideal, sem nenhuma esperança. Depois o Homem que tem o verme na cabeça torna-se indiferente à noção de direcção. Todas as direcções lhe são indiferentes. A vontade começa a fatigar-se por sua vez. Tudo o que pode acontecer a este Homem lhe é indiferente.»
Livro tremendo, pena estar esgotado, actual, necessário. A vida repete-se mesmo quando a História parece diversa. O Homem é sempre "O Primeiro Homem".
sexta-feira, 13 de agosto de 2021
Escorrer do próprio verbo
Agustina surpreende-nos íntima mas secreta pela sua escrita quando se interpõe aos seus personagens, tornando-se narradora e amiúde comentadora, ou quando se revela através deles.
Mas foi talvez nesta correspondência que um conhecimento deu em amizade e esta em sentimento de pertença, esta naquele sentido em que as almas, diferentes porque diversas, se encontram num relação de mútuo e tão próximo reconhecimento.
O encontro deu-se no que seria uma ocasião que lhe deixaria azedas recordações, em Julho de 1959, em Loumarin, perto de Aix-en-Provence, num colóquio de escritores, patrocinado pelos EUA um dos «meios de combate contra a a influência soviética na Europa durante a Guerra Fria».
Como se percebe por esta troca de cartas e não se supõe de modo tão nítido no livro "Embaixada a Calígula", livro de viagens em que esta é uma das referidas, nem os organizadores do colóquio a sentiram como parte do que ali estava e se pretendia e ela própria se apartou de tudo, antipatizando com o que lhe foi dado assistir, essa «majestosa mediocridade» lhe chamaria, acintosa no seu sentir verdadeiro. Antipatia, com uma excepção, porém, a do seu interlocutor nesta correspondência, o escritor Juan Rodolfo Wilcock, que se inicia nesse ano e se prolonga até 1965.
Trata-se, como acentua o prefaciador, Ernesto Montequin, de laços que oscilaram «entre o afecto e a malícia, entre o respeito e a insolência, entre o fascínio e o temor».
Ante as cartas, editadas em abril de 2012 pela "Relógio d'Água, o leitor sente a pulsão errática do desejo, o do encontro, adiado pelas circunstâncias ou tomadas as circunstâncias como razão para o evitar.
Para quem queira achar a pessoa da escritora para além do que escreve, há aqui uma relativa oportunidade, não fora Agustina, mesmo aqui, não largar a pele de quem não se abandona para além da sua escrita. Mesmo assim, momentos surgem, inesperados, em que a volúpia das sensações irrompe para além da contenção das conveniências e seus encargos, como quando em Agosto de 1960, escrevendo de Esposende, para o «meu querido John», como que sussurra: «e nós escorremos do próprio verbo, gracioso e amantíssimo companheiro meu», para longo se disciplinar, como a soerguer-se, para o rictus da pose, clamar, em desespero: «Todas as coisas em meu redor murcham na minha presença, em sólidas, demasiado mortas, recordações».
É um livro requintado, desigual, Juan Rodolfo Wilcock tão aquém, fugidio, cerimonioso mesmo quando superficial, desentendido ou a desentender-se do que lhe chega em afagos de cuidado e mimo mesmo quando em rompante áspero, tal qual foi Agustina, ou quando «vagabunda nos meus costumes e volto a ouvir-me hermeticamente».
É, sobretudo, um livro dorido de revelações: «Vivo a minha crise mais terrível, de dúvidas, de neurastenia, de horror pelo mundo e por mim mesma», escreve do Porto, em Outubro de 1960, e continua: «Caverna de desejos de aparência negra, eu não me atrevo a consolar-me por medo de perder o melhor da minha inspiração, o sofrimento.»
Mónica Baldaque traduziu as cartas que vinham em castelhano e nas notas à tradução explica recuando às origens terenas do Ser excepcional que foi sua Mãe: «A relação de Agustina Bessa-Luís com o castelhano tem raízes familiares do lado materno. A sua mãe, Laura Jurado Ferreira, nascida em Corrales del Vino, na província de Zamora, a 17 de Janeiro de 1897, era filha de Loureço Guedes Ferreira, nascido em Loureiro, Peso da Régua, que por motivos profissionais se mudou para Zamora em 1895. Foi nesta ocasião que conheceu a espanhola Lourença Agustina, também nascida em Corrales del Vino, com quem viria a casar-se em segundas núpcias e de quem teve vários filhos, mas só três sobreviveram.»
sábado, 31 de julho de 2021
A nobreza de não saber viver
Tenho apreço pelas fotobiografias, porque nelas mais do que ler, vê-se o biografado, forma de aumentar o nosso sentir sobre ele, como se nos fosse restituído.
Claro que são, amiúde, obras de devoção e esta, que estava à minha espera depois de uns dias de descanso junto ao mar, anuncia-se como uma «obra de devoção filial» e há, por nisso nelas, menos nesta, perdoável exaltação do biografado: aqui é a voz do sangue dos seus que se perfilam, em escrita respeitosa, eles a quem lhes deu o ser mas deles tão ausente esteve pelas circunstâncias que a vida lhe impôs e fruto do que, ser complexo e tenso, quis fazer da vida.
Estudei Literatura no Liceu a partir da obra que António José Saraiva compusera a meias com o seu companheiro de uma vida, Óscar Lopes, apesar de o meu professor de então ter feito feito notar que o Reitor lhe havia feito saber e pedido que dissesse que se tratava de obra que não podia ser aconselhada. Razões, percebi mais tarde, decorrentes da filiação comunista de Saraiva, com a qual romperia em termos graves e que o decorrer da vida acentuaria.
Vejo aqui que esse notável estudo sobre a História das Literatura em Portugal, teve vinte e uma edições, e foi escrito nas mais penosas circunstâncias, afastado o autor do ensino, confinado de meios económicos, a obra publicada com dificuldade, assim como a sua "História da Cultura em Portugal", editada na década de cinquenta, em fascículos, pelo "Jornal do Foro", a revista dirigida pelo Advogado Fernando Abranches Ferrão.
António José Saraiva marcou o seu tempo pelo inconformismo e este livro, que Ernesto Rodrigues prefacia, é disso exemplo, quer pelo que vem escrito por seus filhos, António Manuel, José António e Pedro António, quer pela significativa antologia que o guarnece. Ao lê-lo, vem à lembrança a rebeldia de um Agostinho da Silva.
Levada a subtítulo, a frase «a intimidade de um intelectual indomável» é rica de conteúdo, mas a que me fica como exemplar é a que lhe volveu Vitorino Nemésio, seu mestre, quando, a rematar uma iracunda conversa entre ambos, sobre a nota a atribuir a um aluno, e depois de Saraiva ter tido o arrojo de lhe desligar o telefone na cara, rematou o que viria a converter-se num processo disciplinar: «Saraiva, você tem a nobreza de não saber viver».
É esta a narrativa de uma vida, os altos e baixos, as polémicas, a ruptura política, o «arco tenso» dos enamoramentos, a frugalidade estóica. Nascido em Leiria, com família originária de Donas, exilou-se em Paris, ensinou na Holanda, escreveu em Macau.
A vida interrompeu-se-lhe ao falar de Fidelino Figueiredo. Quer o que seja, acaso ou predestinação, é um dos pensadores de quem reuni quantos livros me foi possível e por quem nutro um apreço feito de sensibilidade comum.
Aqui ficam estas notas. Do filho José António fui companheiro de escrita no "Comércio do Funchal», o jornalinho cor de rosa onde se albergavam quantos eram do "contra" na década de sessenta; dirigido por Vicente Jorge Silva, vejo aqui uma fotografia em que reencontro, enfim, a fisionomia daquele que para mim era então apenas um correspondente a quem enviava, dactilografados em meia folha de papel, os meus artigos incipientes, fruto de vinte anos de atrevimento: sorriso largo, tão novos éramos, Luís Manuel Angélica.
domingo, 18 de julho de 2021
Genoveva de Lima, a elegante pluma
Li o que Genoveva de Lima Mayer Ulrich [1886-1963] escreveu, com arrebatamento e elegância, sobre Carlos Félix de Lima Mayer, seu pai [1846-1910]. Um artigo de jornal, nosso contemporâneo, achafurdando por mexericos sobre a sua vida social e íntima, para gáudio dos alarves, chama-a, com selvática injustiça, uma «escritora medíocre».
Casada com o Embaixador Rui Ennes Ulrich, duas vezes ministro plenipotenciário em Londres, a sua casa, hoje sobrevivente, em Campo de Ourique, animou um requintado salão literário. Há uns anos, graças à gentileza do seu actual curador, Alfredo Magalhães Ramalho, tive a grata oportunidade de ali falar sobre o texto de apresentação que escrevi para a edição, enfim traduzida do italiano, da obra "O Príncipe" de Nicolau Maquiavel.
O livro, publicado em 1945, editado pela Livraria Luso-Espanhola que ainda conheci na Rua Nova do Almada, é uma biografia de uma pessoa e retrato de uma época, dando o título sinal que resuma a obra: "O único vencido da vida que também o foi na morte».
Discreto membro do grupo "Os Vencidos da Vida", esse escol de primeira linha da inteligência combativa do século dezanove, foi esforço carinhoso para «baixar as pontes levadiças no castelo do esquecimento, revogar o ostracismo, esconjurar o silêncio» daquele ser propulsivo que, propiciando meios para que outros deles usufruíssem, se recolheu à discrição, ficando assim sujeito ao «emudecimento avaro dos seus contemporâneos», esse silêncio nascido na «conspiração subtil em que colaboram o inconsciente e a distração num sentimento fratricida inconfesso, onde vagamente giram despeitos subjacentes e conivências herméticas, sepultando na mesma cova a gratidão e a dívida!...»
Ler o livro, hoje quase já só em bibliotecas, como a Biblioteca Nacional ou a Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, é surpreender na intimidade toda uma plêiade magnífica da cultura e sensibilidade, achá-los reunidos na Quinta da Cruz do Taboado, de Lima Mayer, areópago de «onze menestréis românticos, talvez irreverentes vagamente truculentos, como tudo quanto é moço, mas sem a morbidez fatalista e acusatória daqueles que, julgando conhecê-los, lhes conferiram desígnios demolidores e negativistas»; mas é também seguir a trajectória, ascencional primeiro, e depois em rápida decadência, do biografado a partir do momento em que «a alma do vencido começava a arrefecer antes do corpo: a desolação penetrava-o como lâmina mortal dum gládio invisível».
Sobre Lima Mayer, pobre, em progressiva cegueira, isolado na sua casa às Janelas Verdes, sem companhia que apenas Jaime Batalha Reis consolava, mas já em vão, aproxima-se o momento em que «não era possível viver naquela jugulação como um destroço aos tombos», põe termo à vida com um tiro de pistola. Afinal como Antero de Quental.
Espírito tremendo de irrequieto, nada tendo escrito, Carlos Félix foi, porém, activo contemporâneo, mas em permanente «exílio incognoscível», entre tertúlias e salões, de João de Deus, «o poeta amorável, o sonhador dos ritos ternos, o contemplativo ingénuo e forte como alma de criança e, no peito, toda uma orquestra de cânticos matutinos soltos pelos jardins de Deus», de Eça, que Manuel Rezende lhe apresenta como o «José Maria Eça Mefistófeles de Queiroz, meu velho amigo, que, dentro das botas, esconde os seus pés de chibo», do fugaz Camilo, o severo Herculano, «rodeado de admiradores submissos e de damas fanatizadas», Antero de Quental, «que, nessa altura, já vinha marcado com sombrias inclinações», Ramalho Ortigão, «em briga elegante e empoada com o racionalismo em bronze de Oliveira Martins», este «o herói da sinceridade do pensamento», tantos, afinal, na vida literária, assim como na diplomática, aqui em elegante companhia em Londres com o Marquês de Soveral, embaixador em Londres, figura lendária que se tornou íntimo do Rei Eduardo VII, estimado pela Rainha Vitória e pela Rainha Alexandra, da Dinamarca, que ambas o condecoraram.
Li o livro, há uns dias. Guardo dele, hoje que vim aqui deixar da leitura esta breve nótula, a sensação requintada do que foi, no seu mais esplêndido fulgor, esse intervalo da "Belle Époque"; entre os reposteiros da sociabilidade convivial, a pulsão trovejante de uma época de ruptura, «torneio de fúrias em desalinho, excelentes, higiénicas, que punham correntes de ar na temperatura anquilosada pela espessura dos santos».
Tudo quando cito são expressões de Veva de Lima, como ficou conhecida por este "petit nom". Por aqui se vê que medíocre é quem tão mediocremente a viu, mas isso quanto menos importa.
sábado, 26 de junho de 2021
A fisiologia do amor
A Queda de um Anjo de Camilo Castelo Branco pode ser lido, e há quem leia, como se lido Eça de Queiroz, naquilo em que há nele, em parábola humorística, de crítica social, chacota à vida política e parlamentar do tempo, diatribe à pomposidade oca dos seus discursos, ao caciquismo como forma de promoção partidária, ao triunfo da mediocridade pelo arranjismo
A obra teve primeira edição em 1865, tinha Eça vinte anos, dez anos antes de se ter aventurado pela ironia cáustica com O Crime do Padre Amaro.
Li-a agora na 7ª edição, dita conforme a 2ª, esta revista pelo autor, publicada em 1925 pela Parceria António Maria Pereira, naquelas edições populares, em oitavo, em papel pobre, encadernadas sem título na capa, sim apenas na lombada.
O que retive foi menos aquela dimensão que hoje se diria de intervenção social pelo sarcasmo literário - essa embora impossível de não se denotar - mas o riso, sim, de trágica ironia sobre os acidentes do amor e seus ridículos.
A personagem, presta-se ao efeito. Sente-se em Calisto Eloy de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de Freimas, nascido na aldeia de Caçarelhos, termo de Miranda, em 1815, filho de Basilissa Escolástica e de pai também Calisto, casado com sua prima direita, D. Theodora Barbuda de Figueiroa, ela também morgada, mas de Travanca «senhora de raro aviso, muito apontada em amanho de casa, e ignorante mais que o necessário para ter juízo», o corpo de «poucas carnes» em que assentará a soma de anedóticos particulares que o tornam grotesco.
E é assim que ruma a Lisboa onde «o demónio parlamentar descobre o anjo» e nas Cortes o novel tribuno se destaca, primeiro, pelo burlesco dos seus discursos de cândido puritanismo e de de estrénuo combate pelos antigos valores legitimistas para, de comicidade em comicidade, ferrar o pé nos salões de Lisboa, nestes na casa de um antigo desembargador do Paço, pai de duas galantes senhoras, uma casada e outra solteira, aquela envolta em trabalhos íntimos extra-conjugais.
É por aqui que o fio da história se descose, Calisto qual anjo custódio, urde a seguir «o caminho da predestinação de desviar aquela senhora do caminho mau» e a conquistar as graças do choroso pai, arqueado de gratidão pela restituição da paz doméstica, sem saber que novos bulícios lhe surgiriam porquanto, o anjo salvador, casado embora, seria acometido por serôdia paixão pela filha disponível.
Eis o que se me tornou o momento mais inesperado e marcante do livro, a fisiologia, diria físico-química da fulminante paixão, eis Camilo em um dos seus magníficos arranques:
«Foi neste momento que o morgado da Agra de Freimas sentiu no lado esquerdo do peito, entre a quarta e a quinta costela, um calor de ventosa, acompanhado de vibrações elétricas, e vaporações cálidas, que lhe passaram à espinha dorsal, e daqui ao cérebro, e pouco depois a toda a cabeça, purpureando-lhe as maçãs de ambas as face com o rubor mais virginal».
Mais! Explorando a fundo a caricatura e com ela a mofa, continua o autor da Brasileira de Prazins:
«Duas enfermidades há aí, cujos sintomas não descobrem as pessoas inexpertas; uma é o amor, a outra é a ténia. Os sintomas do amor, em muitos indivíduos enfermos, confundem-se com os sintomas do idiotismo. É mister muito acume de vista e longa prática para discriminá-los. Passa o mesmo com a ténia, lombriga por excelência. O aspecto mórbido das vítimas daquele parasita, que é para os intestinos baixos o que o amor é para os intestinos altos, confunde-se com os sintomas de graves achaques, desde o hidrotórax até à espinhela caída.
«E aqui está que Calisto Eloy - ia-me esquecendo dizê-lo - também sentiu a queda da espinhela, sensação esquisita de vácuo e despêgo, que a gente experimenta, uma polegada e três linhas acima do estomago, quando o amor ou o susto nos leva de assalto repentinamente».
Eis a fisiologia do amor, o «beliscão suavíssimo», «as misérias e parvoíces d'esta serôdia mocidade», o «trabalharem-no umas cogitações tão sandias, que seriam imperdoáveis, se não estivessem na tresloucada natureza de todo o homem que ama», esses «hórridos eclipses do entendimento que após si deixam lágrimas tardias e vergonhas insanáveis».
Perfilhado como «filho de mãe incógnita», órfão de pai aos dez anos, Camilo vivia então, idos amores tumultuosos, com Ana Plácido, em São Miguel de Seide. Por ela e com ela expiara na cadeia pelo crime de adultério.
É, pois aqui que tudo se situa e tudo se explica, a escrita obra de catarse e expiação.
«O amor é tão engenhoso como a natureza» remata-se na obra, no penúltimo capítulo antes da conclusão. Um escritor como Camilo sublima esse engenho com magnificência da Arte de dizer.
sábado, 12 de junho de 2021
Palavras e Sangue
O privilégio de ter um livro, ainda que amarelecido, encarquilhadas as folhas, desbotadas quando não manchadas, a capa, porém, ainda a resistir. Um daqueles livros em que os cadernos iam cosidos antes de a capa ser colada aos folios já batidos, mas em que a guilhotina se ausentava, deixando o corte dianteiro rugoso e imperfeito.
Livro destinado a ter de se abrir com uma faca e ter uma faca adestrada a cortar papel, tudo relíquias de um tempo que parece já tão sumido no tempo, livro indiscreto, a denunciar não ter sido folheado sequer ante os maços por abrir.
Livro assinado pelo que antes o teve como seu, no caso em 1957, ano desta edição, identificado com um ex-libris e que na biblioteca pessoal teve número de ordem manuscrito na folha de guarda.
Livro com orelhas, a esquerda de resumo da própria obra, a direita a anunciar a próxima da colecção, assim fidelizando o leitor.
Livro com capa do pintor Bernardo Marques, que tanto trouxe à ilustração editorial com o seu traço em que pressentimos um Almada Negreiros ou um Mário Eloy.
Ter um livro cuja tradução se prenunciaria fraca, por ter sido isso infelizmente o que sucedeu na editora, mas que é notável porque afinal do poeta brasileiro Mário Quintana, sendo este o seu primeiro trabalho de tradução para a "Editora Globo", versão revista para português de Portugal pelo açoriano Agostinho Vieira d'Areia.
Ter a oportunidade de o livro, buscado à estante, ser de Giovanni Papini, essa portentosa figura do panorama literário italiano, de quem tento juntar quanto posso e ler tudo o que escreveu.
Livro de breves contos, publicado no original em 1912, precisamente no ano em que o autor parecia esgotado com o seu "Un Uomo Finito", ano prolífico em que traria a lume mais três obras, este, "Palavras e Sangue", traz-nos a escrita paradoxal, a equação do tempo com o seu espaço e todo um referencial onírico de desdobramento do eu em um mundo que é o seu próprio espelho.
Difícil escolher em tantas da narrativas qual a que melhor figuraria neste apontamento. Logo o primeiro em que «um pescador estendeu as suas redes e de dispôs a enganar também naquele dia os ridículos peixes», em que «o vento soprava ainda mais forte, encolerizado com a preguiça das nuvens»; ou aquele a que chamou "Sem Razão Alguma", para cujo personagem, «a insónia era o seu excitante e as obras por escrever alinhavam-se, noite a noite, na sua memória, como sonhos artificialmente conservados».
Pena faz que talvez já não haja leitores para quem «todo este presente não é mais do que um prefácio», sensibilidades comuns de alguém «encerrado como uma mónada, secreto como uma célula, mudo com um nocturno felino», seres para os quais «a quinta essência da subtileza filosófica consiste em descobrir a diferença entre iguais».
Fico por aqui. Mundos pequenos: um dos pseudónimos de Giovanni Papini foi "Gian Falco", o mesmo como se iniciou na escrita a nossa Irene Lisboa, a quem dediquei um blog, há tanto tempo por visitar.
sábado, 3 de abril de 2021
Albert Camus: livros de uma vida
Fui comprando aos poucos, porque a vida faz perder bibliotecas, estas ao mercê dos seus insucessos, os livros de Albert Camus. Uns, agora poucos em português, a maioria, de novo já em francês, da edições de bolso da colecção Folio que a Gallimard tornou apetecível.
Entretanto, foi-me possível, num momento de folga financeira ou de atrevimento, encontrar a obra completa já na Pléiade, com aquele típica sóbria encadernação, impressa em papel bíblia. E, depois disso, mais recentemente juntei ao lote de novo a obra integral, de novo editada pela Gallimard, agora na coleccção Quarto, desta vez enriquecida com alguns trabalhos preparatórios dos textos e notas críticas escritas por outros a tentarem dar enquadramento ao que lesse.
Hoje, ao encomendar na mesma colecção a obra integral do filósofo romeno Emil Cioran, de que me chegou, tardio eu sei, o desejo de o aprofundar, trazido o nome pela mão do Mircea Eliade, deparei-me com a questão: que fazer àqueles esparsos que fui juntando, que a alguém pode apetecer ler como a mim apeteceu, tão cedo isso foi na minha juventude? E com a questão caí no problema: mas quem lerá hoje em francês, língua em vias de extinção no nosso ensino? E quem quererá ler Albert Camus em francês e com ele a seriedade angustiada num mundo saturado de mal-estar, sedento de banalidade?
Sim, da sua autoria esgotou-se A Peste, de que houve necessidade de fazer apressadas reimpressões por causa da associação homóloga à actual pandemia. O livro que no passado foi lido como um manifesto contra o nazismo tornou-se no espelho reflexo do nosso confinamento.
Mas, regresso ao tema: que fazer daquilo que em mim é excesso e a outros, suponho, talvez necessidade? Não pretendo pô-los em venda nos OLX's pois só a ideia de os degradar ao cêntimo me incomoda. Prefiro oferecê-los, assim saiba a quem e sobretudo para quê.
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021
Agustina - Régio: dois seres correspondentes
É o epistolário entre dois seres bisonhos, excepcionais na sensibilidade, Agustina a levar a palma em sarcasmo e em profundidade do pensamento, Régio, pretenso tímido, na defensiva, a defender o seu último fortim de sociabilidade, o Diana Bar, lugar que se tornou de desencontro.
E, como em toda a correspondência, ei-las as coisas miúdas, desde os reparos às pessoas, aos pequenos mandados, com a arca a comprar e a restaurar, que se tornaram duas sem que, ao final do livro, o leitor, tenha podido concluir se a segunda se chegou a concretizar.
O «luxo verbal» de Agustina está presente em toda esta escrita, adivinha a cerrada letra miúda, a ocupar toda a mancha do papel passível de ser escrita, e nela também os seus ódios e o seu orgulho, afinal a solidão, em paralelo com o misantropismo de Régio, confuso, proclamando humildade mas ardendo, afinal, no desejo de que os amigos gostassem dele e o lessem, ambíguo na sua contrição.
Claro que, como sublinha Isabel Ponce de Leão, na sua introdução ao pequeno livro, que em 2014 a extinta Babel editou, ainda com a marca Guimarães e a meias com a Câmara Municipal de Vila do Conde, a correspondência entre escritores presta-se ao voyeurismo, apelando ao consumo e assim ao aumento de vendas. Podendo ser esse o caso da primeira particularidade, e a ser ela pecado e não virtude de fruição privada, duvido que tenha ocorrido quanto à segunda.
Através do bem cuidado índice, o leitor reencontra lugares e pessoas. É útil, mas traz, como seu resultado preterintencional, o ir-se directo ao momento em que algumas das figuras literárias que se supunham amadas, aparecerem desfeiteadas com apreciações sinceras mas nada lisonjeiras. O voyeur rancoroso terá aí espaço para o seu deleite, breve, porém. Bem feita! Há que dar aos grandes o benefício de terem sobre o resto um outro olhar, cruel seja, até injusto.
domingo, 7 de fevereiro de 2021
A Funda
Só me apercebi da sua existência quando publicou, recuperando o estilo e as personagens queirosianas, o livro que apelidou de O Regresso do Conde de Abranches, memórias do contemporâneo transpostas para os olhos transactos, narradas pelo fiel Secretário do Conde, e através dele, Zagalo, o chiste e os "leões de riso" em torno de personagens já consagrados na vida pública portuguesa nesse conturbado período em que escreveu, o ano de 1976. Personagens que não terão na altura achado qualquer espécie de piada ao à la minute de que eram instantâneo caricatural, mas que, noblesse oblige, terão disfarçado, com cara de pau, a humilhação ante o que sabiam ser fundamentalmente verdade. Entre eles, Marcial Ribeiro de Souzela.
Li-o então, a Artur Portela (Filho), em pleno PREC, no Jornal Novo, periódico que fundara em 1975 e que, corajosamente, enfrentava a radicalização que tomava conta das mentalidades e das opções políticas. Fazendo-se eco da ideia de que o riso é também uma opinião constitucional, os artigos e os livros suscitavam apreço e rancores na exacta proporção em que o País estava dividido.
Recuperei agora os volumes que faltavam [excepto um, o quarto] da sua série a que chamou A Funda, que teve início em 1972, ainda sob o consulado marcelista, de que me chegou às mãos já só a 2ª edição, editada pela defunta Moraes Editores, onde António Alçada Baptista se foi endividando até ao limite da resistência, custeando, além dos livros, revistas como O Tempo e o Modo, que faleceria às mãos do MRPP e a Concilium, porta voz de uma outra visão do catolicismo, vista do ponto de vista do personalismo cristão.
Ler este livro é surpreender a jovem geração tecnocrática que, com Marcello Caetano à frente do Governo, entrava então na vida pública, e para eles se formava a SEDES, a sociedade de estudos que haviam gerado para tornear a proibição de partidos, ante a subsistência de partido único que o Presidente do Conselho sucessor de Salazar não conseguiu ultrapassar, limitando-se a uma alteração de etiquetas, substituindo a União Nacional pela Acção Nacional Popular.
Incidindo sobre essa nova vaga o lorgnon da sua acutilante análise, Portela, que nos deixou este ano, tira-lhes as medidas, numa crónica datada de Janeiro de 1971: «Com Salazar, impacientavam-se na antecâmara. Com Marcello Caetano, entraram, de roldão, na vida pública. Vêm de Económicas e Financeiras, de Engenharia, de Sociologia. Têm quarenta anos. São apolíticos. Estão na Assembleia Nacional, na Câmara Corporativa, nos Gabinetes Técnicos. Fazem sauna, são católicos progressistas e falam alto, forte».
Assim pintados, eis o seu pensamento pragmático e utilitarista, numa só frase sumariado: «A política, ela própria, globalista, surge-lhes como um romantismo. Não há política. Há políticas. Não há política. Há soluções.»
E, no entanto, o regime, astuto, Artur Portela anota, soube sacar-lhes o necessário proveito. «Muito mais hábil, Marcello Caetano coloca-os, politicamente, nos cargos menos políticos. Ele tira o rendimento máximo destes operários altissimamente especializados. Importa-lhe pouco o seu snobismo tecnocrático. A cheia que eles são é, afinal, força motriz. Força motriz que, politicamente, rende.»
Eis o tom. Claro que livro não é só política. Há nele um pouco de tudo e muitos de tantos passa por ali, num retrato irónico da nossa sociedade, não diria de então, talvez melhor diria, retrato do português de sempre.
Claro que um livro destes custa a ler quando desnuda, com sarcasmo, aqueles de quem gostamos. Mas se não soubermos suportar o riso, se nos levarmos excessivamente a sério, e não aceitarmos que possam ser assim, em gargalhada, avaliados os nossos heróis privados, é porque perdemos então da inteligência o fair play e com isso estamos já em estátua, e pior do que isso, estátua erigida ridiculamente em auto-consagração.
sexta-feira, 1 de janeiro de 2021
Um gesto inacabado de Deus
Biografando a Mãe, Mónica Baldaque biografa-se também, tornando indissociável a sua pessoa daquela que lhe deu o ser; em simbiose natural, Alberto Luís surge-nos, como elo inextricável dessa vida em comum, vida sua pautada pela dedicação à escrita de Agustina, consumida pela profissão de advogado, enriquecida pela arte de desenhar, desenhos de que o livro nos oferece exuberantes exemplos, pena a dimensão das imagens, nisso incluindo as fotografias, não transmitir, quanto devia, o que se sente quando se vê.
Escrita densa de sentimentos, perpassam por ela personagens que julgaríamos inesperados, momentos em que o suposto conservadorismo da autora de Sibila se nos revela em surpreendente inconformismo e mais surpreendente ainda rebeldia de espírito, em humor contido, em cáustico reparo.
Livro de memórias, de lugares, de habitações, polvilhado com pessoas também, nesta parte pode ser lido pelas que lá não estão, até as da vida da própria autora; relato de sociabilidade, é igualmente espaço em que a reclusão se expressa, nota-se pudor no que em outra mão surgiria ostensivo.
Há, eu sei, uma biografia de Agustina, que se tornou controversa. escrita por Isabel Rio Novo, sob o título O Poço e a Estrada. Mas o breve livro que Mónica Baldaque acaba de nos deixar, editado pela Relógio de Água, há um outro mundo em que aos pormenores do quotidiano se sobrepõem os sentimentos familiares e as sensações íntimas, os breves instantes que são um mundo a saber.
Quando, tempos de aventura, editei em álbum o inédito Colar de Flores Bravias, que Agustina escrevera, memória de sua infância, e Mónica Baldaque amorosamente ilustrou, pressenti então o que aqui leio. O livro ficou-se pelo tempo do esquecimento, a editora sumiu-se como um intervalo do que já vivi.
Livro singelo, afinal, como se caderno diário, tornando em escrita o que está num carta de sua Mãe: «Não estilizemos demasiado o que sentimos porque acabaríamos afinal por fazer da melancolia uma vaidade mais». É esta a sua beleza sem ênfase.
domingo, 27 de dezembro de 2020
Um bicho de afectos
Suponho que difícil é escrever a biografia de alguém que tenha ainda vivos parentes mais directos, por haver o risco de ferir susceptibilidades, ao ir além em revelações embaraçosas e suponho também quanto não seja fácil escrever a biografia de alguém com uma personalidade de extremos e tudo é o caso de Fernando Assis Pacheco: é, pois, tarefa difícil para que não torne a biografia ficção, amputado o biografado da sua completude.
Não poderei concluir que esta o conseguiu, porquanto, para formular juízo, precisaria conhecer aquele cuja vida fica assim relatada, mas talvez me entenda comigo, entre o que julgo ser o que os outros dele pressupõem e aqui se esclarece agora ao ler, e aquilo em que eu estava, afinal, errado e tive, enfim, a oportunidade de descobrir.
Os que o consideraram Assis Pacheco jornalista, no Diário de Lisboa e em O Jornal, para não mencionar a República e tantos outro periódicos, acertaram, mas muitos, reduzindo-o assim, talvez tenham esquecido o escritor, da ficção à poesia, passando pelo ensaio, e sobretudo escritor que na prosa jornalística de distinguia pelo cuidado na fórmula, pela ironia no modo de dizer.
Os que lhe conheciam o estilo, irreverente até na maleabilidade que dava à língua portuguesa e ao modo de surpreender pela construção frásica, talvez ignorassem quanto se perdeu no domínio da ensaística académica, nomeadamente na Literatura alemã, em que não completou os estudos que iniciara sob a direcção de Paulo Quintela.
Mas são aqueles, os do estado de conhecimento de muitos desses vectores da pessoa que são, afinal, parte subsidiária de uma vida exterior, resíduo apenas da densa interioridade que define o ser, os que precisariam de um livro como este para nele acharem as contraditórias pulsões, as do amor e do sofrimento, da ternura e da cólera, da irrealização e da meticulosidade. Para saberem que ao terem-se rido ou irritado com a sua presença em A Visita da Cornélia, talvez não tenham pressentido quanto há de lastro dorido das vivências da guerra que lhe vincaram a sensibilidade.
O que a biografia de Nuno Costa Santos me trouxe e por isso a breve epígrafe levada à contracapa, frase de Miguel Esteves Cardoso, a considera maravilhosa por ser verdadeira, foi a revelação do que será para muitos um pormenor, não fosse uma daquelas surpresas que a vida nos revela, restituindo-nos à humildade do pouco que sabemos e mostrando quão precária é a aparência de que fazíamos certeza.
Tinha lido dele os Trabalhos e Paixões de Benito Prada, publicado em 1993, pela Asa. Fui dar, outro dia, na estante, para além da edição com encantadora encadernação, de que aquela editora fez imagem de marca, uma outra, de bolso, capa mole, afinal aquela que lera em primeira mão. E logo no arranque do livro a prosa me ficou para todo o sempre, com ela o espasmo violento daquela forma tão brutal de começar: «Quando o padeiro velho de Casdemundo teve a certeza de que o Manolo Cabra lhe desfeiteara a irmã, em dois segundos decidiu tudo [...]».
Foi com esses olhos que encomendei à Tantos Livros, essa carinhosa livraria que fica ali pela Marquês de Tomar, ao chegar-se à Duque de Ávila, e o li em três fôlegos nocturnos.
Supunha-o galego, de uma Galiza que tivesse sido local de nascimento, fosse em si a origem e o modo de ser. Foi, pois, a biografia sobre a qual escrevo que me devolveu afinal ao conhecimento de que o livro foi caminhada em retrogressão, em busca da ascendência avoenga, tal como uma outra obra não concluída sobre um avô paterno que viveu anos em São Tomé.
Restituída a criatura à sua realidade, não se esgotou ela em menos verdade, nem em menor riqueza.
Construído a partir da vida documentada e das memórias relatadas, o livro traz-nos esse «pasmado sem cura», sôfrego de vida, e que a viveu em grande parte nesse «mundo em Azert» para retomar uma frase de um falecido querido amigo, o Cáceres Monteiro, seu colega de jornalismo, meu colega de curso.
Não digo mais. Lido um livro, chegando o momento de o trazer aqui, fico sempre com a ideia de ter ficado por partilhar a riqueza do seu conteúdo, aquilo que dele retive, os momentos que me foram dados viver com a sua leitura. Se há nessa omissão propósito, ele é o de apelar os outros a que leiam.
Fernando Assis Pacheco morreu em frente à Livraria Buchholz. A verdadeira Livraria Bucholz morreria depois: «Morre-se praí/morre-se num instatemente de nada/morre-se a morte mocha/sem a gente dizer ai», escreveu no poema O Mocho e o Macaco.
segunda-feira, 7 de dezembro de 2020
A inesperada maravilha
Ter nas mãos um livro inesperado por não se saber a razão pela qual se adquiriu, ver nele, como autor, um nome que logo se alcança ser pseudónimo, autor que mesmo depois de desvendado, não há dele vestígio conhecido. Lê-lo, e nele descobrir magnificência no modo de escrever, riqueza vocabular e a estilística que convoca do real a existência e da fantasia a possibilidade. Chegar ao termo com o coração apertado pela tragédia humana que o sentimento de quem o escreveu soube encontrar e a que não fugiu, e tudo isso trazer eco de memória.
Eis quanto encontrei ante o livro China, País da Angústia, assinado como de Ruy Sant'Elmo, afinal Abílio Augusto de Brito e Nascimento, personagem ignoto mas que consegui saber ter sido juiz em Macau. A obra, com capa de Fong-Iôn-Chi foi impressa em 1938 e publicada pela Parceria António Maria Pereira.
São contos, Kakemonos, lhe chamou o autor, como «a pintura chinesa, executada em peças móveis de papel ou seda, colada sobre um tecido ou papel mais forte, que lhe serve de moldura e se prolonga pela parte superior, terminando por um rolo de madeira».
Mas não só: há a apresentá-los uma rememoração de alguns dos conceitos taoístas, e tanto eles regressam como luz interior ao conteúdo de cada narrativa, trazendo-lhes, nesse «o quer que seja» um outro sentido para além do imanente conteúdo narrativo, o mundo na sua identidade em constante transformações, pois, em todo esse seu mundo aparente de sombras, dor e agonia, «não há senão vida...Transformação incessante...A morte não existe!».
Tanto há no que li que traz recordação e presença, logo o título, a convocar o Angústia em Pequim de Maria Ondina Braga, que, tal como ele, soube embeber-se dessa alma oriental no sentido da máxima melancolia e da íntima compreensão, mescla que em outros convidaria ao distanciamento, almas geminadas de Camilo Pessanha e Wenceslau de Morais, que a vida amaldiçoou, martirizando-os até ao supremo exaurimento.
No momento de vir aqui, não sei o que vos traga do que li.
São as excelentes formulações, formas de ver ante o que se lê, como ao falar da orografia local e seus montículos se lhes refere como «o dorso das eminências, zebrado de clareiras», ou a propósito dos tormentos infligidos por ordem do mandarim, «cevando a raiva apavorada da reivindita», ou, cruzando-se, indiferente, com a carpa agonizante junto da folha verde-jade dum golfão azul «o estertor da morte, a convulsa agitação dos opérculos, faziam estremecer as escamas que tremeluziam em lucilações cor de brasa», ou, enfim, a velha e seus «olhos pequeninos, sumidos entre papulusidades refranzidas das suas pálpebras oblíquas, que perscrutavam o insondável».
É a recriação da língua, indo surpreendê-la em vocábulos raros mas que arrastam, alguns pela onomatopeia, ideas, factos, sensações, como a «bruma glutinosa», o «ar bochorno», a «poeira exil das fumaças» de ópio, a «fauce hiante» dos leões de Fó, as «curvas alvorescentes» da delicada figurita de rapariga, a «nevoeira incoercível» cor de zinco, as «arnelas dos dentes à mostra», a «tremulina murmurante da sua ondulação».
Mas é sobretudo a natureza invulgar, surpreendente, insólita mesmo dos costumes e suas tradições que são o rasto da narrativa, ao trazer-nos, invulgar, o necessário casamento para um morto e assim se não perde a linhagem, ao contar-nos o inquestionado modo de a ida ao templo trazer a prenhez da mulher do homem estéril, que no silêncio resignado quanto ao modo de ela ter sido alcançada, encontra, sim, meio de procurar o que pretendia, afinal, a descendência, ao afogar-nos os sentimentos pelo ópio que não mata, mata sim a insaciedade do viciado, ao relatar, com grandiloquência o suicídio vingativo de quem não poderia, sem perder a face, bandido embora, sofrer derrota às mãos alheias.
Muito mais haveria nesta obra dedicada a Leal da Câmara.
É preito de respeito que, ao falar do que se leu, não se estrague o prazer a quem puder vir a ler. Livro raro este, será improvável que haja quem eu possa assim ofender contando mais. Fica, no entanto, apenas este excerto por uma outra legítima razão, a de a minha escrita sobre quanto li ficar aquém e ficará seguramente muito aquém de quanto li e me trouxe a inesperada maravilha.
sábado, 23 de maio de 2020
Os mais distintos facínoras
de Fafe, que ela odiava desde os animais até aos vegetais», «as musas do Porto [que] tinha fugido para os joanetes dos brasileiros, cuidado que as protuberâncias calosas eram o seu Pindo»