sábado, 23 de maio de 2020

Os mais distintos facínoras

Imagine-se o desejo que me deu de ler Camilo Castelo Branco neste momento da sociedade contemporânea, sociedade reclusa de si mesma e da minha vida, sujeito a tudo o mais. Lembro-me de uma das minhas paixões, Maria Ondina Braga a chegar a Malanje, na automotora, a ler, insólito facto em luxuriante flora africana, A Brasileira de Prazins
Fui à estante, escadote acima, e desci-os todos quantos tenho e são muitos e não são sequer aproximadamente todos, se é possível tal coisa, o conseguir-se reunir toda a sua obra, ele de quem disse Aquilino, produzia «como as macieiras do seu quintalinho dão maçãs. Às cestadas». 
E já agora, veio abaixo também, para o alcance da mão, Aquilino Ribeiro, que é a continuação da mesma família literária e um parente colateral de quem tenho escassa livraria, o Júlio Dinis.
E, moído de deveres, e em mim os deveres são uma maldição bíblica, li, aos poucos, mas todo o livro, os Mistérios de Fafe, que publicou, primeiro, em folhetim, como soía ser, no Jornal do Comércio, corria o ano de 1868 e depois em tomo.
E aqui estou a dar conta do que ficou lido.
Mais uma vez desconsidero a narrativa em favor do modo de no-la contar.
Através desta escrita excepcional e pela sua mão certeira, deambulei pelas Terras de Bastos e e por Lamego, vim a Lisboa e fiz uma surtida pelo Porto que me lembre. Já para as últimas folhas dei comigo por Cascais e ao Vítor em Sintra, onde, em «lua de jalapa» a já tardia nubente «teve a ditosa ocasião de admirar o estômago de seu marido, quanto se pode admirar um estômago no exercício de esmoer jantares dignos de um ogre».
E que riso, que troça inteligente, refinada em ironia e sublimada em vocabulário rebarbativo!
Camilo Castelo Branco transforma-se em contador da história que criou, como se tivesse presenciado e dela fosse crítica testemunha, intromete-se mesmo, por vezes com caritativa distância, para que não pareça ser o escritor juiz, e não surja da sua pena a prosa como condenação.
E muitos são os pecadilhos que por ali fluem como águas de ribeiro, ora manso ora jorrante, de todos eles o menor, apesar de constante, o adultério, seus filhos imprevistos e outras malfeitorias afins.
No permeio, o anticlericalismo atávico do autor não perde nem oportunidade nem fôlego e a tiro de trabuco assesta, quanto pode e o relato permite, chumbada, nos costados dos curas, que ali surgem como exemplo, pela negativa, de uma moral de que o livro é a denúncia e demolição.
As personagens são, cada uma, um manancial espichado de defeitos e duvidosas virtudes. Mais uma vez impossível deixar aqui amostra que seja.
Ele é o vocabulário, a carecer de dicionário que os da contemporaneidade não chegam, aos quais os verbos como "acadrimar" e «eniboscar», ou adjectivos  como "anacarado" são alheios, como estranho surge o "escurentar o coração". Ruralismos, dirão alguns, provincianismos, acrescentarão, aqueles para quem Literatura só merece sê-lo quando transposta para os ambientes citadinos, lisboetas sejam, e mesmo aí, apenas de locais selectos de modernidade e distintos por exclusão. Mas gigantes exemplos, digo, de um modo de escrever que não se perderá enquanto houver quem leia e sem medo da coerção moral de ser tido por antiquado.
O leitor lê e tem pena. Tem pena do espingardeiro de Guimarães, esse Francisco Roixo, com quem a Rosinha Carneira, a mais bonita e invejada rapariga de Fafe quereria casar. Casamento de conveniência, como sucedia, não seria assim que viria ao tema da trama que a partir de então se desenrola. 
Tem pena e sorri ante Caetano de Ataíde Sotto Maior, filho de abastada fidalga do Porto, vindo do Colégio da Lapa, no Porto, e que, «findos três anos de vadiagem com todos os rr possíveis» pela Universidade de Coimbra, regressou a casa «mais ignorante e corrompido do que tinha ido».
À piedade e riso soma-se o temor quanto ao que irá suceder à «besta-fera do Padre Custódio», de cujo púlpito «urrava» uma «virulenta apóstrofe às adúlteras e aos fidalgos devassos» e que um dos bandidos da Cerva, Pedro das Eiras, fez morrer ...de apoplexia, sacerdote que «tinha como sã doutrina violar o sigilo da confissão em benefício das famílias, quando outros recursos mais suaves falhavam ao pio propósito».
E ganha raiva ao modo como a Justiça, morto o enganado marido, serviu a injustiça da ilibação do assassino, «comprando o perdão da viúva do morto. Depois, conseguiu anular-se desde o corpo de delito o processo no supremo tribunal. Alugou a consciência das testemunhas, que se contradisseram. Moveu à piedade a eloquência do acusador público, amaciando-a em favor do réu. Deu-lhe o mais afamado patrono. Os jurados choraram e absolveram.»
O mais é para ficar aqui por dizer, não vá surgir em algum leitor desta nótula ganas de ir-se ao romance e não quero estragar o benefício da surpresa. Sobretudo um muito querido meu, ali das Terras de Basto, fidalgo de dom e modo, que pode ir através deste excerto, procurando pela vizinhança realidade remanescente que dê verdade ao que Camilo diz ser ficção: «É de saber que Silvério de Mendonça tinha nascido em Mondim de Basto, onde avultava o forte de bens paternos. A sua casa torreada era o couto dos malfeitores foragidos das autoridades, que não ousavam pôr mão em criminoso acolhido nos penetrais do desembargador Mendonça. Do turbulento concelho vizinho, chamado Cerva, onde o magistrado tinha casais, raro ano deixaram de acoitar-se em Mondim os mais distintos facínoras, uns porque eram caseiros, outros em virtude do parentesco.»
Fiquem apontamentos que são, todos e cada um, lampejos geniais de observação acutilante, como, em matéria de ditosos enlaces, a provada «utilidade dos comendadores devolutos», o divórcio requerido por D. Gabriela «porque o marido se lhe assenhoreou do dinheiro, como era de uso e justiça, e lho vai jogando com notável infelicidade», a recusa da mesma em «encharcar-se no lameiral
de Fafe, que ela odiava desde os animais até aos vegetais», «as musas do Porto [que] tinha fugido para os joanetes dos brasileiros, cuidado que as protuberâncias calosas eram o seu Pindo»
«Esta novela contém adultérios, homicídios, missionários e outros cirros sociais», adverte Camilo em nota de entrada sobre o título "Aviso às Pessoas Incautas".
Fico por aqui. Vou contar o Camilo que tenho por ordem de data, tentar preencher os espaços vazios e ler, ler o que puder quando puder, entre os deveres mais este dever. 

sábado, 16 de maio de 2020

Uma fuga ao pensamento

Lentamente, como se tivesse todo o tempo da vida e não tenho, li-o na íntegra. E não poderia ser de outro modo, até porque o pouco tempo deve ser oferecido ao que verdadeiramente importa, ida a irrelevância. 
Se me perguntarem pelo fio da narrativa, não consigo reconstituir; se me pedirem para caracterizar as personagens que vão desfilando ao longo da história, também não consigo dizer. É por isso que não sou um crítico literário, apenas leitor que deixa apontamentos sobre quanto leu e, seduzido, tenta, escrevendo, convocar outros à sedução.
E, no entanto, dizem que em Agustina as figuras que retrata ao longo do que conta vão mudando e alguns perdem-se pelo caminho, e talvez assim seja, mas disso não dei conta, nem me parece que tenha sequer importância e até é benéfico que assim seja por aplacarem os remorsos de, tendo lido o que se conta, no final, não saber contar.
O Susto é um livro magnífico e tenho pena ao pensar que talvez já não o volte a ler.
Tenho o hábito insólito de estar atento ao momento em que surgiu a palavra ou a frase que dá título aos livros, como se em busca da pegada que assinale a ideia que gerou a criação. É um exercício minudente, eu sei, mas a vida não é só grandeza; desatento, como sei ser, é uma forma de disciplinar a concentração. E achei, e quando encontro surge um contentamento redobrado, para além daquele outro que provém de ter lido. E ali está, na página 287, desta edição original, tirada pela defunta Guimarães em 1958 - «[...] mas a vida não são, de resto, os assuntos que se nos oferecem, as experiências que sofremos - e, acima de tudo, o susto.» - e de novo, em modo fugaz  na página 324: «o susto tinha-o pois dominado.»
Sei que há quem deteste Agustina por causa dos seus aforismos e tenho comigo o livro Aforismos que a mesma editora - ó fúria dos irritados - publicou em 1988 e em cujo pórtico surge, em jeito de explicação, a lógica deste modo de escrever enleando o texto em máximas e sentenças: «o meu pensamento estende-se de uma maneira caótica e para o deter recorro ao aforismo. E dou muita importância aos aforismos; são uma fuga ao pensamento.». E seguramente dá importância, porque, para si, como o assinala a contracapa dessa obra: «o aforismo é uma lição, e não o pretexto para uma pirueta».
Leio, já o disse aqui, de lápis na mão a sublinhar e fica como critério, o quanto sublinhei, na horizontal a frase, na vertical todo o período, o parágrafo, por vezes as páginas inteiras onde seria impossível destacar um excerto breve como digno de realce: aqui muitíssimo.
Posto isso, é, porém, impossível trazer aqui a lição que esse modo de escrever traz, pois é experiência íntima, intrespassável, redundaria em ofensa se fosse tentado. E, no entanto, é o que apeteceria fazer, de modo tão estridente quanto está vincado na sensibilidade.
Deixo, num outro registo, o arrebatador, o modo como arranca esta escrita: «Num povo pessimista, não o bastante para ser neurótico, nem exasperado para ser sobre-humano, depara-se-nos às vezes certo fenómeno de combustão interior que é pouco menos que uma nova ética». É uma frase típica, desconcertante pelo remate, porque do encadeado do raciocínio esperava-se uma diversa conclusão. Tantas suas são precisamente assim, a surpreender, trazendo o leitor de novo ao dito e vendo que ilusório era o pensado ante um novo pensar aquele encadeado de ideias, aquele jorro de sentimento.
E, ainda em outro, esta também: «E no seu andar rápido, há uma despedida e a justa fugacidade da juventude.»: lê-se e graficamente como se «rápida, a sombra» [perdoe-se a incursão por outro autor] vemos escapar o tempo restante na simbólica nostálgica de um adeus.
Não escrevo mais, apesar do desejo. É sábado à tarde e hoje está Sol. Seja a contenção desta breve nota convite à leitura, pois o livro é encontrável em edição contemporânea, publicado em 2019 pela Relógio de Água, que, em feliz hora, retomou a edição do cânone.