domingo, 30 de outubro de 2005

A leitura

Eu confesso que já deveria ter lido o «Nítido Nulo» mas só agora é que o estou a ler. Há aliás na vida tanta coisa que eu já deveria ter vivido e que nem sei agora quando o irei viver. É o «gosto antecipado da sede que ainda não tenho». Vem lá no livro, assim, a sede de uma cerveja, a sede de uma vida. O personagem está preso e «as próprias grades são pintadas de branco para deixarem passar a alegria que puderem». Faltava-me este livro do Vergílio Ferreira. Encontrei-o, enfim. Não foi por causa de o não ter que o não lera, mas agora que o tenho, hei-de esgotá-lo de tanta leitura.

A hora

Hoje anoiteci mais cedo e acordei melhor dormido. Calculava que era por ter atrasado o relógio, até ter descoberto que era por ter pensado que o mundo mudara. Claro que mudara apenas na sua dimensão quantitativa, a de ter andado tudo para para trás. O presente passou súbito a passado, o futuro adiou-se-nos sem dar conta. Foi tudo pelas duas da manhã. Nesse momento, o hoje passou a ontem, dando-nos a oportunidade de o viver duas vezes. Azar meu o estar a dormir. Quando acordei, tinha a preguiça perdoada.

sábado, 29 de outubro de 2005

Chuva

Há neste hotel um recanto e nele uma janela e através dela uma palmeira. Animada pelo vento, acena-me os seus ramos, como alguém à distância na hora de partir. Há neste hotel a ideia fantasiosa de que a chuva, que o vento trouxe, perpetua o conforto de ficar. Há neste recanto o sentimento incómodo do acenar-me de fora, além da janela, aos que, como eu, decidiram ficar.

terça-feira, 25 de outubro de 2005

Aquém do possível

Imagine-se uma cabeça vazia, sem um pensamento, sem uma névoa de uma melancolia sequer. Imagine-se um corpo dorido de cansaço, espécie de reumatismo generalizado, os ossos num feixe, os músculos exaustos. Imagine-se um mundo despovoado de almas, atulhado de corpos sonâmbulos. Imagine-se. Não se saia da imaginação, fique-se assim imobilizado, os olhos escancarados de morto. Com o chegar do frio as coisas pioram. Eis junto a mim uma folha de papel, totalmente em branco. Nada do que eu pudesse ali escrever me é possível imaginá-lo.

domingo, 23 de outubro de 2005

Davam grandes mortes ao domingo

Li no jornal que morrem ao domingos jovens entre quinze e vinte e quatro anos. Pela leitura não percebi de que morriam. Sendo-se mais velho, ao domingo, morre-se de tristeza, alguns com a segunda feira da ilusão à vista.

quarta-feira, 19 de outubro de 2005

Uma pausa

Há quem tenha jardins e passe por lá depois do jantar, só para ver como vai o que plantou. Aqui é mais ou menos parecido. Há dias em que não se semeou nada e fica-se a olhar para o passado. Há no homem aquela ânsia de criar, que o esgota. Uma pausa, preenchida com nada, eis a sua salvação.

terça-feira, 18 de outubro de 2005

A vingança

Lembro-me de ser miúdo e ver como era. Iam à capoeira, filavam uma e cravavam-lhe a faca na goela. O sangue esguichava às golfadas e ela estrebuchava frenética, recusando a morte. Acho que ainda cheguei a perguntar se lhe doía, mas tenho a certeza de que me mandaram calar. Habituei-me a comê-las, sem pensar nisso. Hoje juraram vingança e ameaçam matar-nos, aos milhares. Talvez nem perguntem se nos vai doer. É-lhes indiferente.

segunda-feira, 17 de outubro de 2005

A declinação do eu

Olhou-se ao espelho, mirando-se reflexamente, sorriu-se na condicional, e continuou na forma gerundiva. Ao sair de casa descobriu que a sua vida era a voz passiva, uma forma indirecta de viver sem ser sujeito. Vivido que estava o que havia para viver, indiferente ao predicado de si, tornou-se um infinito substantivado. Hoje não há gramática que o conjugue.

domingo, 16 de outubro de 2005

O umbral

O desamparo aos dezassete anos era feito do refúgio em cantos abrigados, quantas vezes o umbral de uma janela, os olhos perdidos no descampado em frente. Reconheço-as, a uma e uma, cada fenda na cal da parede, as mossas na madeira pintada do caixilho, a memória embaciada deste local.

A porta fechada

Esta noite eu recordo a ideia de um pai, por detrás de uma porta fechada. Lentamente cresci até chegar ao puxador. Mas nessa altura tinha aprendido a bater, antes de entrar. Um sentimento forte, apesar de longínquo, recordo-o esta noite, crescendo lentamente em mim, aprendendo a fechar-se, como uma porta que se encerrasse, antes de alguém entrar.

A invisível presença

Há neste desvão de escada o que eu preciso para ter a ilusão de que, aninhado aqui, ninguém mais dá pela minha presença. Na minha infância, porque já houve em mim uma infância e vivida nesta mesma casa, sonhava-me aqui como se no lugar mágico da minha invisibilidade. Rodopiavam os mais crescidos, indiferentes à minha ausência, e até o arrastar penoso dos avós parecia mais preocupado com o para onde iam do que com o onde eu estaria. Há neste desvão o ter aprendido o que é, na vida, o não fazermos falta. Hoje, no jogo de acasos que é o viver-se, trocaram-se as peças no tabuleiro: este é o desvão onde se escondem todos eles, os idos e os que foram, e eu já nem dou sequer pela sua invisível presença.

Prontos

Há os que organizam a vida para estarem prontos aos cinquenta anos. Outros chegam a essa idade e a vida começa enfim a organizar-se-lhes. Estes últimos pensam ter ainda vinte anos; tarde descobrem terem muito menos tempo do que isso.

El Gordo!

Tinha a ideia de que éramos dez milhões e agora vejo no jornal que somos quatro milhões de gordos. Ou como vem na notícia, «em Portugal, a obesidade afecta quase quatro milhões de pessoas». Ao ler isto, neste domingo à espera da massada de peixe, lembro-me da frase que anda por um muro perto da minha casa: «situacionistas gordurosos tremei, a vossa celulite tem os dias contados». Lembro-me, escrevo e olho para o relógio: com esta mania de almoçarem às duas da tarde, que tal um pãozinho com queijo para ajudar a entreter?

sábado, 15 de outubro de 2005

O pó branco

Faendo-se eco de um encontro sobre saúde, o Diário de Notícias, sob o apelativo título «Este pó branco também mata» escreve que «o sal contribui para o aumento dos casos de hipertensão arterial, acidentes vasculares cerebrais (AVC), insuficiência cardíaca, cancro do estômago e osteoporose». Eu sei disso, e sendo hiper-tenso, ainda sei mais. Mas que querem! Já tentei viver uma vida insossa e ia morrendo, de tristeza!

sexta-feira, 14 de outubro de 2005

E não passou

Há dias em que dá vontade de ir parar ao hospital, só que não se sabe é por causa de que maleita. No caso da preguiça, o grave é quando se tem alta: uma pessoa, habituada a tanta doença, fica sem saber o que fazer da saúde. Por causa disso, há quem nunca se cure. Vem isto a propósito de eu não vir aqui desde o dia 11: estive internado, para ver se me passava.

terça-feira, 11 de outubro de 2005

Rasteiros

A última vez que aqui estive dei conta de que tinha começado a chover. Hoje ao rever as notícias, percebi que pode chover mesmo a sério. Nunca entendi porque motivo é que se diria «que até os cães a bebem de pé». A minha dúvida é que os cães não andam de pé: com as quatro no chão, como andam, em rigor andam deitados, ligeiramente a cima do nível do chão, um pouco mais do que rasteiros. Eles e muita gente, pois há os outros, os que andam «abaixo de cão».

domingo, 9 de outubro de 2005

Mensagem do céu

Hoje finalmente o céu decidiu-se a chover. Acordei com a rua em frente de cara lavada, as árvores vivificadas em verde. Não fossem os raros automóveis e os regulares autocarros, nada parecia acontecer. Um ou outro eleitor matutino, daqueles que vão lá por obrigação, que os de convicção por vezes faltam, escapulia-se por debaixo de um guarda-chuva. Da janela do meu quarto encarei o mundo, animando-me, como se convencesse de que valia a pena começar. No fundo, é só mais um dia. Amanhã, pensa-se no outro.

sábado, 8 de outubro de 2005

Escrita embargada

Uma escrita torrencial, entrecortada dos gritos que a memória traz, uma escrita sufocada como a voz embargada na ânsia esganada de dizer, uma escrita desnorteada, de quem com ela quer apenas sair desde lugar: um lugar de silêncio, um lugar de solitário labirinto. Fosse essa a escrita possível, a vida teria ganho, enfim, um sentido. Mas não, esta não é já a escrita possível, esta é a escrita que foi necessária.

sexta-feira, 7 de outubro de 2005

Clássica

Há táxis e táxis. Fui para Santa Apolónia num que lhe fugia o pé para a chinela. Regressei, desta feita num outro, onde se sintonizava na Rádio Clássica do Montijo, a que esteve para fechar, a que nem sempre emite, a que felizmente existe.

quinta-feira, 6 de outubro de 2005

Chinelando

Ela encontrou a chinela e eu encontrei-a a ela na Rua do Capelão, ela encontrou a própria vida, eu encontrei o coração. Acreditem. Existe. Ouvi num táxi, em onda média, que ainda subiste, num mundo que ainda há.

Coma com pão

Foi ao folhear, vagueante, a folha oficial que descobri que ele há o «Clube de Caçadores da Açorda». Calculo que de quando em vez cacem uma perdiz, para a comer com a dita. O pior é quando lhes apetece açorda de bacalhau. Aí só com a ajuda do Clube dos Pescadores, o da Terra Nova!

quarta-feira, 5 de outubro de 2005

Errantes e errados

Nietzshe, com a agudeza dos míopes, previu que o casamento se tornaria numa colecção errática de indivíduos, orientados à prossecução de fins egoístas. Toda a vida viveu celibatário, destinando egoisticamente um livro excepcional à grande família da humanidade.

terça-feira, 4 de outubro de 2005

O fado da História

A frase pertence ao José Cardoso Pires, num livro que eu penso que já citei aqui uma vez, por causa de um outro dos seus textos: «lá vai o português, diz o mundo, quando diz, apontando umas criaturas carregadas de História que formigam à margem da Europa». Sem querer ser injusto, penso que isso que está na frase era dantes, não porque não formiguem hoje portugueses, mas porque, quanto ao carrego da História, anda tudo mais leve e mais solto. Estamos como aqueles países que nasceram ontem: saltitantes de presente, indiferentes ao futuro, vazios de passado. A nossa única diferença é essa tristeza a que chamamos fado.

segunda-feira, 3 de outubro de 2005

Os limites do sentir

Continuo a ler a «Conta Corrente». Há quem não perdoe ao Vergílio Ferreira o tê-la escrito, por isso que nela se patenteiam as suas obsessões nem sempre exaltantes. Há quem não o suporte vê-lo assim, em trajes menores e sem pose, neste diário incerto do homem-escritor. Por causa de a ter escrito, não poucos inimigos arranjou. E, no entanto, por tudo quanto no livro não vale a pena, há momentos de genialidade única, em que numa só frase se resume mais do que um compêndio de filosofia, todo um modo de pensar a vida, sentindo-a. Digo-o esta noite, ao ter lido a frase «é-se por dentro, por fora está-se». Após ela, recuso-me a ler mais o quer que seja; não me perdoaria, se o fizesse.

domingo, 2 de outubro de 2005

O salto

Se aquela figura literária do Eça de Queirós, que não era completamente viúva, encontrasse alguns dos seus leitores, que nunca são completamente casados, não haveria gente totalmente tristonha.

sábado, 1 de outubro de 2005

Marcha fúnebre

No Mil Folhas de hoje, que eu, como num ritual, leio com o jardim aqui em frente diante dos olhos, vêem excertos de uma conferência inédita do Luís de Freitas Branco, porque se lembraram que há cinquenta anos ele morreu. E nessa conferência fala o conferencista da interpretação cadavérica de toda a música considerada séria e elevada. Pois é precisamente assim que muita gente interpreta a vida que vive: descompassados, atonais, afinando o tom pelo coro, cadavericamente, em suma.