terça-feira, 13 de fevereiro de 2018
Fulgurantes, incansáveis palavras
Uma confissão.
Evito muitas vezes a leitura da moda sem
argumento melhor que o da simples vontade de não ir por aí, de caminhar fora de trilho e clareira e
esgueirar-me, por entre árvores, até onde se supõe aguardar-me o inesperado
tesouro. Sei bem que é uma indesculpável (mas espero que benigna) forma de
soberba. Primeiro, porque nem todas as florestas abrigam tesouros; segundo,
porque nem todos os trilhos levam a lugares comuns.
É, em todo o caso, a razão pela qual O Meu Irmão, obra vencedora do Prémio
Leya 2014 e amplamente badalada, me veio cair nos braços só muito recentemente,
um pouco aos trambolhões. A visita à livraria destinava-se a comprar um outro
livro de um outro autor; lida, porém, a primeira página deste, já não sei se
por acaso ou por curiosidade, não me foi possível deixá-lo para trás.
Começo por dizer que o menos interessante da
obra será essa arqueologia literária que quase sempre se cai na tentação de
fazer em torno dos autores de livros célebres ou celebrados. Que Afonso Reis
Cabral venceu o Prémio Leya com apenas 24 anos. Que é trineto de Eça de
Queirós. Que o livro, embora ficcional, é influenciado pela experiência directa
do autor, por motivos familiares, com a síndrome de Down.
Nada disso deve relevar em excesso ante uma
escrita que merece ser lida sem mitologia nem qualificativos. Isto é: que merece
ser aplaudida pelo surpreendente sopro de vida com que insufla as personagens e
a sua história, e não por um qualquer apesar
ou por causa.
A premissa, em linhas sumárias, é esta: numa
aldeia portuguesa, abandonada ao desgaste do tempo e da ausência como tantas,
dois irmãos passam uns dias na casa de família. Miguel, o mais novo, nasceu com
síndrome de Down. O narrador, pouco mais velho, chamou a si a responsabilidade
de cuidar dele após a morte dos pais, reatando a proximidade de infância
interrompida por muitos anos de afastamento do seio familiar. Contra este pano
de fundo vão desfilando as memórias da sua vida em comum, que a par e passo nos
revelam, por vezes de modo insólito, quem são estes irmãos e quais as razões e
efeitos do seu distanciamento e ulterior reaproximação.
Há também, no passado e no presente, pessoas
cuja presença adensa a trama do livro e os seus argumentos. E há ainda,
perpassando toda a história na qualidade dupla de cenário e de personagem
central, o Portugal interior – desertificado, viúvo, à espera – composto com o
rigor e o critério de quem sabe muito bem o que fazer com as palavras.
Fiquem avisados de que este livro agita até
aos ossos. De que ousa ser cru e desapaixonado e colocar no centro da narrativa
uma personagem imensamente imperfeita e ferida em algum sítio fundamental.
Menos ainda hesita fazer-nos olhar de frente para questões difíceis, como a da
crueldade que vem vestida com as roupagens do amor, ou a da solidão de corpo
presente, ou ainda a do amor em si mesmo perfeito mas excludente de tudo ao seu
redor.
Depois, é claro, há a questão da deficiência,
que Afonso Reis Cabral retrata nas suas pequenas e grandes manifestações, e
cujo impacto na vida de cada personagem se esforça por investigar sem derivas fáceis.
Convém dizer que o livro, sendo duro, não é
desprovido de humor, de momentos mais ligeiros, até de uma certa redenção, sob
a forma da capacidade para o amor total e também para aquele amor que aprende a
ser na adversidade, que aceita, que protege e que no limite tudo perdoa.
Sim, o livro assenta como um murro no estômago,
mas esse murro desperta e faz pensar, não se sente nunca como gratuito.
E depois há as palavras, as fulgurantes, incansáveis
palavras, e uma voz sóbria, madura e muito própria, e ainda uma narrativa
ancorada não só em vida interior mas numa história bem desenhada e de passo
mensurável, num clímax que surpreende e desnorteia, como nem sempre se vê entre
autores portugueses.
Há um livro que merece ser livro e um autor
que se apresenta de forma extraordinária.
domingo, 11 de fevereiro de 2018
A temperatura das palavras
Encontrei o livro por acaso. E de súbito nele tudo se tornou familiar. Desde logo a primeira referência a Luís Pedo Moitinho de Almeida, filho do proprietário de uma das casas comerciais onde Pessoa exerceu a sua profissão burocrática e que sobre ele nos deixou um livro e outros apontamentos diversos, recordações de um jovem atemorizado entre a genialidade que pressentia.
Depois, a referência ao local de nascimento do autor, Celorico de Basto. E logo um telefonema, a um meu Amigo, a quem li, o texto que assinalava uma tal origem, abriu a oportunidade de uma próxima visita me permitir ver, passando ao largo que seja, pela Casa de Melhorado, a de sua família.
O livro é uma digressão à tertúlia do Café Montanha, que Fernando Pessoa frequentava, extinto porque selvaticamente demolido e talvez, por isso, na superficial imagem do poeta, tudo se concentre como se, como local de companhia, só existisse o Martinho da Arcada, ao Terreiro do Paço.
Mas há mais: é a convivência próxima tornada narrativa, polvilhada de factos pequenos, é certo, mas igualmente interessantes porque mesmo a grandeza tem os seus recônditos íntimos de minudências e insólitos
Há, seguramente, um público ávido de voyeurismo, para quem as pequenas histórias se transmutam na História. Esses encontrarão aqui migalhas com que festejem o banquete da coscuvilhice. E talvez surpreendam Pessoa a não usar outros lápis do que «bocadinhos de lápis, aparados de um e de outro lado», ou no dichote a Pedro Theotónio Pereira, que amplamente detestava, enaltecendo da criatura o que lhe parecia nele de mais notável, o ter «os pés grandes». Ou ainda que, num passeio à Tapada da Ajuda, em carro eléctrico descoberto, Pessoa, entre cedros e abetos, tenha preferido que lhe mostrassem «tamarindo e um grão de pólen e não tarda um segundo que não pretenda que se agarre antes uma abelha».
Mas o que a obra me trouxe foram facetas interessantes, talvez porque as menos acentuadas por tantos que escreveram sobre o autor da Mensagem, que, já agora um pormenor pícaresco, na primeira prova tipográfica vinha o título escrito como Massagem...
Uma delas o da acção política daquele que, no imaginário colectivo, aparece envolto no nevoeiro do isolamento e da marginalidade. São várias as referências à sua acção no Núcleo de Acção Nacional, a mais conhecida fixação em Sidónio Pais, o Presidente-Rei. [quem quiser um pouco mais, pode ler aqui e aqui]. Grupo «meio fantasma» já se lhe chamou, de reduzida intervenção prática, voltado a uma ideia de uma monarquia «científica», assim ela nos é aqui resumida como ideia, fora dos ideais do Integralismo Lusitano, a cujas hostes o autor declara pertencer. Tudo temperado pelo desprezo a Afonso Costa e, afinal, àquilo em que a República se transformara.
Outra, a da densidade da profunda amizade a Mário de Sá Carneiro e o tremendo momento, que ali se confidencia, do instante, em que, ante um gato agonizante, cena com que tropeçara numa das suas solitárias deambulações, porque envenenando com estricnina, em volteando em longa agonia, ante os seus atónitos olhos, visão trágica e premonitória, a cabeça do animal aumenta de volume «e era a cabeça redonda do Sá Carneiro, eram as suas órbitas, as suas bochechas e um olhar triste e amargurado de despedida». Sá Carneiro suicidar-se-ia, em Paris, onde estudaria Direito, na Sorbonne, precisamente pela mesma horrível forma, morte dolorosa.
Francisco de Paula Peixoto da Silva Bourbon [1908-1992] divulgou as crónicas que o livro agora compila no jornal Ecos de Estremoz, entre 1972 e 1973. Outras, sob o mesmo tema, publicaria nos jornais Cidade de Tomar, Consciência Nacional, Notícias de Guimarães, O Comércio de Gaia.
Sobre o livro, com cujo autor privou, Pedro Teixeira da Motta escreveria no seu blog [ver aqui]: «Francisco Peixoto Bourbon cultivava muito as amizades, era sinceramente um ser bom e generoso e foi ele mesmo que me introduziu a outros amigos de Fernando Pessoa, tais como Moutinho de Almeida e o Manuel Menezes de Vasconcelos, e transmite muito bem nas suas evocações o calor humano que circulava entre eles, realçando bastante a falta do meio condigno do génio de Fernando Pessoa, embora a tertúlia do Montanha fosse quase um refúgio de consagração e onde se podia dialogar com franca troca de ideias, como o jovem estudante de agronomia logo experimentou, tornando-se como que o benjamim acalentado da tertúlia, da qual nomeia como participantes o eng. Rogério Caldeira Santos (seria o maior admirador de Pessoa e posteriormente tentou infrutuosamente transformar o café Montanha num museu Fernando Pessoa), o dr. Manuel de Menezes Vasconcelos (um dos mais íntimos), o Marquês de Penafiel, Da Cunha Dias, o Joaquim Palhares, Victoriano Braga, o dr. Pedro Moreira, o Mário Saa, o Dr. Carlos Lobo de Oliveira, o eng. Pulido Garcia, o Victoriano Braga, o Gualdino Gomes, o capitão Gastão de Melo de Matos, e umas poucas vezes o António Botto e o Almada Negreiros.»
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Eis o apontamento singelo. As palavras têm temperatura. Estas, fruto de um Domingo que finda, teimosamente ainda frio, terminada a leitura, feita às prestações, são mornas.
sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018
Anunciando uma coabitação
Hoje, 9 de Fevereiro de 2018, anuncio uma coabitação. Adriana Barreiros, minha filha, que se estreou na poesia com o livro Ser humano é uma coisa Pessoal [ver aqui], aqui se junta com as suas ávidas leituras e a sua refinada sensibilidade.
Talvez devesse como pai sentir orgulho, mas um filho não é um prolongamento de nós, sinto, pois, uma infinita alegria.
Na memória de um pai, um filho é sempre a imagem da eterna meninice. Ei-la, pois, o rejuvenescimento perpétuo.
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