sábado, 31 de janeiro de 2009

Em frenesi

Fui a uma feira do livro no átrio da estação de comboios da Expo. Ladeava-a uma feira de discos e de filmes. Falo de livros, embora tenha comprado uns filmes, para me reconciliar com o cinema em casa e tenha visto, sem comprar, uns discos que da próxima vou lá filar, como uns cantos japoneses acompanhados com o que, meio pitosga, me parecia um alaúde, entoados pelo que me parecia, e pus os óculos, uma geisha de fino requebro.
Uma feira é a oportunidade de encontrar livros inesperados, que o circuito de distribuição já não recebe. Porque hoje hoje o mercado livreiro gira na base da rotação de stocks. É gerido por gente que vem da banca, que sabe cálculo financeiro e de marketing editorial. Olham para a literatura na base de critérios de amortização de custos e de rentabilização de investimentos, frequentemente como forma de garantir o cash-flow quando a tesouraria aperta.
Mas uma feira é também uma caixa de surpresas. Ao lado da História das Orgias, de que o que menos interessa é o autor, vendem-se as 100 Maneiras de Cozinhar Bacalhau da prestimosa Rosa Maria. No meio, tímido lá estava, em amorosa edição da Frenesi, a narrativa dos sofrimentos dos padres, especialmente jesuítas, crúzios e capuchinhos, fidalgos, principalmente os Condes de Óbidos, da Ribeira Grande, de S. Lourenço, os Távoras e os Marqueses de Alorna nas prisões da Junqueira.
«A experiência tem mostrado que quanto maior é a miséria, maior o desamparo», diz-se numa folha que abri ao acaso agora que cheguei no meio de uma chuvada digna de Noé e sua barca. Grande frase, motivo sobejante para ler. Não digo já, porque tenho que trabalhar, preguiçoso embora, nem mais logo porque hoje é sábado.

O barómetro

O Finisterra do Carlos de Oliveira está a ser o meu barómetro quanto à capacidade de ler. O livro é pequeno mas progrido muito lentamente. Espanto-me sempre com aqueles leitores de alta velocidade, TGV's da literatura, os que estão sempre a reler clássicos em volumes de grande tomo e actualizadíssimos com o vient de paraître. Humano, dependente dos estados de alma e da meteorologia, leitor nos intervalos dos deveres e como fuga às obrigações, não consigo essas proezas na praça da maratona. Esta manhã, ainda por cima, doía-me a cabeça, «o sol agora mais lunar que as sete luas». Ainda só vou na página noventa e três. São cento e trinta e nove, na edição da Assírio & Alvim. Hei-de chegar ao fim. Leio-o linha a linha, cada palavra de sua vez, a irradiante luz da magnífica escrita a ofuscar-me o pensamento.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Malanje ao sábado

Lembrei-me agora, mas passou-se no sábado se não estou confuso com datas e tenho estado. Fui à Rua Anchieta, ao lado da Bertrand, a livraria que tem aquele cheiro doce logo na sala de entrada. Há lá, na pequena artéria que vai dar ao Governo Civil, uma venda de alfarrabistas. Normalmente começo pelo fundo da rua, venho até ao princípio, farejando banca a banca, deixando-me tentar, viciado. Por vezes faço duas voltas, como o pintor dá duas demãos, a engomadeira uma nova passagem para reforçar os vincos numas calças teimosas, a jovem que, não acreditando no Responso a Santo António, passa e repassa pelo bosque dos amores em busca da travessa para o cabelo que, distraída de namoro, por ali deixou ficar.
Ora neste sábado encontrei-o. Editado em 1954, era uma reportagem sobre a cidade de Malanje, em Angola. «Olha que fantástico», disse eu, ao bem-humorado livreiro, com aquele inesperado opúsculo nas mãos. E de facto era notável pelas recordações que me trazia: o senhor Pratt do Banco de Angola, o Santos Pinto, a Casa Americana, o jardim do Caminho de Ferro, a Robert Hudson. Tudo aquilo me dizia tanto.
«Nasci aqui», confessei-lhe, incapaz de reter mais tempo aquele segredo, prendendo-lhe com isso, inesperadamente a atenção, confidente e amigo.
Com ele em frente, bigode farto, sorriso aberto, era já impossível não o levar comigo. «Mas são vinte e cinco euros», cortei, timorato por tal banalidade, um pequeno esgar que parecia traduzir incerteza, tão automático que nem dele me apercebi, a envergonhar-me por estar a regatear um tesouro.
Só que de repente o destino jogou a sua cartada na mesa deste jogo de sorte. «Olha, o meu avô!». Ali estava ele, de facto, numa festa de Natal da Cotonang, a companhia belga de algodão, o velho Rebelo da Silva, pai da minha mãe.
Talvez uma aura de ternura, bálsamo de remorsos e perfume da bondade, me tenha envolto a figura, adoçado a pose. De livro ainda na mão, enternecido por haver ali um passado que era meu, ouvi-o, como num murmúrio segredar-me, meu querido livreiro: «faço-lhe vinte euros».

sábado, 24 de janeiro de 2009

O gérmen invasor

Há quem escreva sobre o que lê. Eu já escrevi sobre o que li. Hoje vou escrever sobre o que não consegui ler.
Tentei regressar ao Finisterra do Carlos Oliveira. O livro tinha ficado interrompido. Uma pequena marca, feita com o talão azulado de uma etiqueta, assinalava onde.
«A face dianólica de um facto esbarra na linha onde começa a outra face: celestial», diz o narrador. A duplicidade do real, a geometria submersa da realidade tornou-se-me hoje insuportável, como uma tendência mórbida para a indiferenciação.

A veia literária

Senta-se um homem devolvido aos seus livros entreabertos, não finalizados, aos livros que comprou e não leu, ao que não escreveu. Droga de substituição, na literatura estão quase todas as sensações já experimentadas, excepto uma: anular-se assim a vida totalmente substituída, escrita, sem vontade de a voltar a ler. Senta-se um homem entre a ideia de tantos livros. Meticulosamente, deixando bilhete de adeus, abre a veia da criação, esvaindo-se, derradeiro, jorrando a vida que se anula, linha a linha, no livro que lhe faltava finalizar. Carregados de expectativa, os leitores esperam ansiosos.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Um livro

À medida que os anos passam e fazem estragos na memória, à medida que os livros vão sendo muitos e por vezes confundimos o que temos com o que gostávamos de ter, fica sempre em dúvida sobre não estaremos a comprá-los pela segunda vez.

Há vezes em que isso não importa. Já comprei um livro de memórias em edição encadernada porque a de formato bolso, que eu já tinha, editava menos fotografias e eu queria aquela fotografia. Já comprei um livro de aventuras pela segunda vez porque a nova edição tinha capa diferente e eu queria a capa. Já comprei uma biografia repetida porque esta tinha uma dedicatória. Já reincidi na compra de um livro por julgar que o perdera.

Hoje não. Na verdade eu hesitava se me teria alguma vez cruzado portas adentro com o controverso Ana Paula do Joaquim Paço d'Arcos. Ao chegar a casa vi que, aleluia, não tinha. É que comprei-o esta manhã. Mas, repito, espero que se acredite, isso era o somenos. O somais, como diria o outro que acreditava na congruência morfológica desta língua irregular, é que trouxe o livro porque, sendo a primeira edição, editada em 1938, ostentava, para além das manchas de bolor, aquela encadernação a pano, tão tipicamente colonial como a farda de um chefe de posto, e no interior o carimbo da Livraria Magalhães, no Lobito.

Na lombada, além do nome do livro e da obra, tal como nos livros do meu pai, o nome daquele a quem pertencera: Alda Corte Real. Quem seria? Onde estaria? Porque estaria ali a obra? Tanta tristeza num só livro, tanta vida por se saber.

sábado, 10 de janeiro de 2009

A porcelana

Li umas folhas mais do Finisterra, só umas folhas porque o Carlos de Oliveira tem de ser lido assim, goticularmente.
É uma escrita despovoada, vivida em torno do vento, da areia, da mais esquisita botânica, uma escrita das ocorrências subtis, desconsideradas pelos atletas dos sentimentos, os maratonistas das sensações.
Detive-me ante a exaustão das gisandras depois do seu nocturno clímax floral, parei ante a voz da mãe que modela as palavras em tonalidades independentes de acentuação e «se a palavra tem só uma sílaba, a voz sobrepõe-na ao começo da palavra seguinte».
Isto sim, é escrever sobre a miniatura e a fragilidade, a quebradiça porcelana que os chineses inventaram e os alquimistas descobriram, etérea, perto da névoa.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Entre cobertores

Enroscado em cobertores, tossindo nos intervalos de espirrar, os olhos a lacrimar, purgando pegajosidades e outras repelências, sem ao menos a dignidade de uma febre, a ver as horas a escorrer na inutilidade da prostração, um homem sente-se, no auge de uma constipação a ler perpetuamente este excerto de Nietzsche, do seu livro A Gaia Ciência, com que hoje o dia findou, a frase a rodopiar-me a cabeça, eu num atchim potente de exclamação sentida: «Temo que os bichos considerem o homem como um semelhante que se privou da razão animal sadia, como um animal no delírio, que ri e que chora, como um animal infeliz».
Haverá lá coisa mais sem razão do que este delírio de gripes, que tornam o rei da criação uma insignificância expectorante, reduzido à vil domesticidade de uns cházinhos e outras tizanas meladas, galinha chocadeira da própria canja, aspirina sem metafísica, salta um conhaque que mal não faz mesmo quando não cura e ao menos sempre se esquece!

A branca madrugada

Nestes dias de frio polar o Homem apercebe-se de qualquer coisa profundamente errada estar a acontecer no mundo em que habita. Não que se não esteja em Janeiro, mas porque amanhã pode surgir, de um modo tão inesperado como este gelo, uma vaga de tórrido calor, chuvas de afogar ou uma seca sem fim.
Tudo parece condenado à única sorte fatal, inexorável e definitiva: a suprema lei do acaso gerar a inevitabilidade do caos.
Pó neste tumulto de elementos erráticos, o Homem apercebe-se, enfim medroso, de que pode ter pecado contra o equilíbrio do mundo, desorganizando as leis do Universo, arrostando a cólera da Natureza.
Ei-la agora a branca madrugada em que nas nossas metrópoles se descobre que há cada vez mais velhos, mais mulheres, cada vez menos famílias, um mundo de solidões, desencontros, de histórias de impossibilidades. Neste deserto humano de arranjos de ocasião, de vigílias noctívagas, faz agora tanto frio nas ruas como nas almas gélidas desses sem abrigo dos amores funestos.
Cumpre-se um ciclo, o homem e o seu habitat enfim indiferenciados, o mineral a assenhorar-se de tudo quanto ainda vive, o sol a empalidecer.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

O sangrar por dentro

Foi ele quem me ensinou que é possível escrever-se de modo breve. Um dia visitei-o em casa, ali junto à Basílica da Estrela. Bebericando uísque, descemos ao inferno de uma história sobre a qual estou hoje a traduzir um livro e já atrasado, fantástico acaso, com ele no pensamento. Ao chegar à rua, nessa tarde fria de um tão sentido encontro, senti-me tão bêbado que nem sabia onde deixara o carro. A vida tem destes momentos de magnificência. Felizmente há memória para se viver cada momento do tempo para além do tempo do momento.
Ora encontrei-o hoje, através de um livro onde arquivou trezentas das mil e quinhentas crónicas que cinco vezes por semana nos deixava no Diário de Notícias. Editado pela Contexto e eu, retardatário na cultura, distraído no reparar, que só há pouco tempo soube, por uma menção confessional das que fazem nódoa negra na pele, que é uma forma de se sangrar por dentro, que a Contexto era do Manuel de Brito!
Vinha isto a propósito de uma das colunas em que anunciou, por doença, o fim dos seus escritos. Com o fim à vista, Vítor da Cunha Rego escrevia, naquela forma plural de falar de si: «Faremos o possível por tornar normais esses cinco dias».

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

As Janeiras

«Como é tradição desde os romanos, cantemos as janeiras para afastar os maus espíritos e desejar um bom ano». Cito da Livraria Pó dos Livros. Fica ao pé de casa. Passo por lá, por vezes a caminho do Pingo Doce. Não sorriem muito, mas são amáveis para com os livros. A vida é feita disto, de comezainas e não só de leiturzainas. Lembraram-me que se cantam as janeiras, para desejar bom ano. Cantei-as com eles.

domingo, 4 de janeiro de 2009

As povoações temporárias

Tinha-o lido descuidadamente. Na altura notei o óbvio, os murgos biliosos, os caules de gisandra, o revérbero entre as nuvens e as misagras, a duna com tanta areia, as aranhas e a teia de sal, os velhos itinerários, relâmpagos de carbureto.
Depois de Finisterra, comprei Uma Abelha na Chuva, de que Fernando Lopes fez cinema, e a um e um tenho comigo todos os livros que o Carlos de Oliveira escreveu. E mesmo o livro que Carlos de Oliveira renegou, a Alcateia.
E depois, porque há sempre um depois nos nossos amores literários, tendo já tudo, naquelas edições em azul da Assírio e Alvim, comprei o volume da Caminho, encadernado, sóbrio, em excesso e duplicação, só por ter a Casa na Duna que voltaria a encontrar na edição da Portugália, que trouxe para casa por causa da capa do João da Câmara Leme.
Retomei-o hoje, deliberadamente. Maravilho-me.
Todos quantos lêm depressa, não leiam! Abstenham-se os devoradores de palavras, os do fast food literário, pedalantes leitores do sprint da novidade, camisolas amarelas do vien de paraître.
Finisterra é um prodígio cinematográfico para se estudar o que se lê. Cada palavra por si e há que voltar atrás e fazer a ligação, ponto por ponto para que a figura ganhe corpo.
Tudo ali arranca de uma fotografia que reproduz a paisagem que a criança descreve, vendo-a de uma janela, num caderno que o homem lê. Tudo continua na almofada que reproduz, em traço geométrico e sugere o mesmo em gravura abstracta, o que da janela se alcança de na fotografia se condensa. Tudo se esgota na folha perdida nos papéis de família e suas notas sobre o povoamento, povoações temporárias, os camponeses de passagem. E o vento, a presença desse vento milenário e suas areias, dunas sobre dunas a perder de vista, as cores crestadas, os lugares malignos em nossa casa, que não merecemos.
Carlos de Oliveira mais do que escrever, desenha, é o arquitecto da realidade e o geómetra da irrealidade. Finisterra é um jogo de volumetrias, de tonalidades, de planos de corte, de projecções de espaços substantivos em planos não poliédricos.
E, no fim, em excelência, a sussurrar que «na paisagem, na fotografia, na almofada, não havia ninguém. Pois não. E eu povoei-as. Quer dizer, povoei o desenho a pensar nelas». Vem na página 16. Da edição da Assírio. A que vou continuar a ler.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Uma história para calar

O Chiado não sei porquê estava cheio de gente. Hesitei se seria sábado ou ainda sexta-feira, que estes feriados e dias santos e comemorativos e mais as pontes e as tolerâncias são uma espécie de desarranjo intestinal na vida mental de um citadino. Nisso quem vive entre o nascer e o pôr o sol tem menos aflições. Eu regressava de comer massada de peixe e foi isso que me devolveu a certeza que seria sábado.
Estava aberta a antiga Sá da Costa, entregue a saldos, a restos, a uma tristeza de adelo. Na frente, ao lado de um caixotão dedicado ao Pessoa, que mais parecia um esquife de luxo para um desgraçado que morreu ignorado, uma segunda edição da fotobiografia do Agostinho Fernandes, o homem que teve a generosidade de colocar a sua fortuna ao serviço da cultura, através da Portugália e de tantas outras formas de apoiar artistas e escritores. Portugal, o Portugal literário essencial não seria o mesmo sem ele.
Acontece que eu tenho receio de fotobiografias. Menos pela vergonha de encontrar nelas em torno do biografado - quantas vezes morto, outra tantas assim enterrado ainda vivo - a pulhice dos que se chegam pressurosos no seu roçarem-se em grupo nas exéquias obsequiantes, muito mais porque às vezes há vergonhas e descaramentos como o Mário Soares a prefaciar a do Ruben A. dizendo que mal o conhecia e pouco o tinha lido, mas mesmo assim aqui vai prefácio.
Não foi, porém, por medo que deixei lá ficar o livro, que me perdoe o Cruz Santos. Lembrei-me de uma história que dá para rir e que tenho de calar, sobretudo quando a menina da caixa, de cabelo à rapazinho e uns olhos que são uma carícia para quem lhos nota, me disse, a voz inocente e no mais indiferente, que eram quarenta e cinco euros.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

O escritor e seus fantasmas

Esta madrugada antes de viajar escrevi, assim como antes de adormecer li. Claro que pela tarde, viajante, estava no reino do bocejo e do aborrecimento. Voltei aqui para escrever que do que li o mais impressionante foi um texto decadentista do Ernesto Sabato sobre o romance.
Sabato que era doutorado em física, achava, na sua visão deseperada do humano que «o nosso romance mais do que uma sucessão de aventuras é o testemunho trágico de um artista diante do qual ruiram os valores seguros de uma comunidade sagrada», essa crise que ele sente ter surgido na Idade Média e que abriria as portas à profanização e com ela ao entertenimento, à diversão, às «imagens sem sangue».
Pode não se achar graça e negar razão. Mas quando se lê uma frase como «os homens escrevem ficções porque estão encarnados, porque são imperfeitos. Um Deus não escreve romances», perdoa-se tudo.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Um povo triste

Miguel de Unamuno visitou a Guarda em Dezembro de 1908, há cem anos, onde chegou lendo Camilo e «ler Camilo é viajar por Portugal, mas o Portugal das almas». Desapontou-o a cidade «fria, ventosa, húmida feia, denegrida e forte». Percorreu-lhe as ruas, sentiu-lhe a Sé, o Liceu, o café. Ironizou, em riso aberto, com a «força cómica inconsciente» de um comunicado aos jornais sobre o presidente da Câmara do Sabugal.
Mas o que mais vincou a sensibilidade de quem escreveu O sentimento trágico da vida, foi o que o levou a dizer-nos, num retrato do nosso ser, povo de suicidas, que «Portugal tem sede de lágrimas». Uma sede de um povo «antes apaixonado que sentimental», vivendo numa perpétua paixão que lhe consome a vida.

Engraçada

«Extraio ternura de uma pedra», escreveu Raúl Brandão no prefácio às suas Memórias. E lembrei-me, por isso, do seu livro sobre as ilhas desconhecidas, essa sua viagem à Atlântida açoreana, ao Corvo, às Flores, a cólera súbita do mar, esse rodilhar marítimo de uma terra que ameaça desabar. E fui buscá-lo e estive agora com ele, com o António da Ana, o Joaquim Valadão, a grave compostura, o Manuel Tomás, a senhora Emília, a fome, o vento na solidão tremenda, o Pico, os fogaréus e a lembrança dos alfabares, e a filhinha pequena que «morreu mas engraçada». «Engraçada é sinónimo de feliz», explica Raúl Brandão, a noite já a entrar no primeiro dia do meu novo ano, extraindo ternura das pedras.

A caminho de casa

Chegou hoje a utopia de esquecer, e com ela, má, feroz, em bátegas vingativas, a chuva dissolvente. Sob ela, a terra vivia, cinzenta, fechada, adversa, no tempo cósmico do seu calendário, o primeiro dia, a caminho de casa.