terça-feira, 17 de setembro de 2019

Num espelho estilhaçado



Em Comala, há mortos que nunca realmente morrem e vivos que nunca realmente vivem.

Há um filho que chega, para pedir satisfações a um pai ausente, por promessa feita à mãe em seu leito de morte.

Há outros filhos e outras mães, e outras gentes ainda daquela cidade, por vezes pouco mais que vultos num horizonte à meia-luz, desfiando sem pedir licença um infindável rosário de misérias, enxertando sem pudor a sua história na trama principal, reclamando protagonismo.

E há, no centro de tudo, aquele pai ausente e latifundiário tirano. Um homem cuja magra réstia de luz, eivada de trevas, reside na constância de um grande amor de juventude, tão determinado quanto impossível.

Como num espelho estilhaçado, a narrativa em «Pedro Páramo» muda de boca, ponto de vista, casa, cronologia.

O que se mantém constante é o pano de fundo: um lugar e um tempo cruéis, regidos pelas leis da violência, da vingança e da perda, povoados por personagens que, mais do que interagirem, parecem chocar umas contra as outras, para logo se desencontrarem no essencial.

Emerge também, ao longo das páginas, o retrato de um México rural, dominado por donos de terras e agitado pela revolução e pelo conflito armado.

Os locais são descritos como quem caminha por eles adentro com cada sentido desperto, deslocando o leitor do lugar onde porventura se encontre para o interior de um «tempo da canícula, quando o ar de Agosto sopra quente, envenenado pelo odor putrefacto das saponárias»; para o interior do «voo das pombas rompendo o ar quieto, sacudindo as asas como se se desprendessem do dia»; para o interior da «água que goteja das telhas» e soa «plás plás e depois novamente plás, em meia folha de louro que dava voltas e reviravoltas entalada numa fenda dos tijolos»; para o interior, ainda, do «eriçar da tarde com uma chuva de triplas ondulações» e de «uma aldeia que cheira a mel derramado…».

Real e irreal são um só, nesta obra original, misteriosa, simbólica e pujante, escrita pelo mexicano Juan Rulfo, e à qual Jorge Luis Borges chamou «una de las mejores novelas de las literaturas de lengua hispánica, y aun de la literatura».

Li-a na tradução de Rui Lagartinho e Sofia Castro Rodrigues, publicada pela Leya em 2017.

domingo, 8 de setembro de 2019

Simenon & Maigret

Foi o primeiro livro que escreveu da série Inspector Maigret e assinou com nome próprio. Na altura já tinha mais de vinte "romances populares" publicados pela Fayard. 
Tudo nesta escrita de Georges Simenon é interessante, até o próprio processo de escrita.  Abalançou-se a este género que considerou difícil.
Dactilografado numa improvisada secretária, pregada esta a um barco em que vogava entre o acaso e um porto de acolhimento, a narrativa traduz, em muito, o ambiente circundante, desde a vida portuária à dos personagens que o habitam. Li-o em francês por ser nessa língua que ele pode ser sentido e por isso compreendido.
Permito-me sugerir que aquilo que fez um género na categoria dos romances policiais só seria possível pela conjunção deste ambiente, de uma personalidade conturbada como a do seu autor e um ambiente filosófico parisiense, que mais tarde o existencialismo haveria de assumir como filosofia e literatura.
Por um lado, porque Jules Amedée François Maigret tem vida própria, nisso incluindo biografia. Nasceu em 1877 e morreu no final de 1970; por outro, porque o seu método de trabalho é em tudo distinto daquele a que o leitor se habituou a assistir quanto a todos os outros. O que há aqui não é o exercício da inteligência lógico-dedutiva de um Sherlock Holmes, nem a ambiência upper class das figuras de Agatha Christie, na qual o belga Hercule Poirot é seguramente lídimo expoente e presença refinada.
A vida pessoal e familiar de Maigret, a sua missão, o modo como Simenon o situa, são também, numa certa essência, um panfleto de crítica social: mal pago, a viver uma vida de modéstia e sacrifício, sujeito a todas as contingências, é o proclamado braço da lei em luta contra o mundo do crime, mas socialmente desprezado por tantos que, querendo paz e tranquilidade para as suas vidas, beneficiam da vida de que acaba por se privar, dia e noite perseguindo as suas pistas, sofrendo intempéries e arrostando perigos, vencendo o cansaço e a desilusão. Logo no segundo capítulo: «La présence de Maigret au Majestic avait fatalement quelque chose d'hostile. Il formait en quelque sorte un bloc que l'atmosphère se refusait à assimiler», um polícia ostensivo num lobby de hotel, «le mot crime, cauchemar de tous les hôteliers du monde.»
O que há neste livro de interessante, depois de ter lido, à solta, muitos outros da mesma série, é que está ali tudo, porque no ovo da serpente contém-se a totalidade da serpente: a figura maciça do inspector, como se talhado de um bloco de carvalho, a sua calma fleugmática, a persistência de um cão de caça, mas sobretudo aquele método de envolvimento com o mundo onde descortina o crime, o de se plantar e deixar embeber pelos locais, seus odores e seus ruídos, e isto porque «dans tout malfaiteur, dans tout bandit, il y a un homme». 
Para chegar à essência da realidade é preciso esperar, aguardar por uma fissura que revele o humano e não apenas o jogador que é aquilo que, em regra, a polícia procura. É preciso chegar mesmo à perigosa proximidade com o criminoso, não sendo menor perigo atingir o limiar da compaixão, essa forma amorosa de amizade, ir em busca de Pietr le Letton, dito Fédor Yourovitch, dito Oswald Oppenheim e, enfim, não o encontrar, antes aquele que se apoderou da sua alma por já ter o seu corpo.
E, no entanto, como ressalva Simenon, também ele Maigret usa, como os outros seus colegas, os meios extraordinários do seu tempo, os do francês [Albert] Bertillon, doamericano [Albert John] Reisse e os do também francês [Edmond] Locard, com tudo quanto eles significam de crença racionalista na ciência como método criminalístico.
A história deste livro é, não apenas a de um interessante exercício sobre a duplicidade de dois gémeos, mas igualmente a transposição do tema para o mundo da própria atitude policial, tantas vezes o polícia tem também de se travestir no que não é, mas naquilo que seja, no caso, a aparência e o porte conveniente; é, por outro lado, o da excepcionalidade do homicídio no quadro da criminalidade financeira, no caso, a de uma rede de burla por falsificação, excepção que, tornando invulgar a ocorrência da morte, gera quase a improbabilidade da sua existência e a dificuldade na sua condenação, por tudo se situar num mundo em que os jogos de poder atenuam a diferença entre o permitido e a infracção, tornando sólidas reputações um biombo interessante para a ocultação da sua ligação ao crime, o agente de polícia figura insignificante no território em que se movem embaixadas e políticos, empresários e altos quadros.
No interjogo teatral dos episódios, em que o narrador amiúde se intromete, como espectador comprometido da sua própria escrita, tudo é, além disso, transportado para contextos históricos e sociais, em que a percepção das pessoas só se alcança pela compreensão da sua proveniência. É uma escrita culta, para leitores que se não fatiguem. 
Escrito em 1931, terá de se compreender, é certo, a mundivisão do autor, não diferenciada do que era o Zeitgeist desse momento: os segmentados países bálticos, o entrechoque dos comunistas e dos ultranacionalistas, o ghetto judaico, os russos e os polacos, os intelectuais e os vagabundos. 
Algumas das referências talvez não passassem no crivo delirante do politicamente correcto, essa neo-censura da contemporaneidade.
Trata-se de Literatura, sem arrogância nem piruetas de estilo, expressão, mostra, enfim, da força vital de uma densa humanidade e de compreensão por tudo quanto é humano. Só por isso, vale a pena, até como pedagogia, necessária para os burocratas da repressão, mesmo os que, na repartição pública do pensamento, organizam o modo tecnocrático de tentar ir ao seu encontro, para a debelar, afinal sem a entender.