domingo, 20 de outubro de 2019

Tomaz de Figueiredo: lido na minha toca

Luto por ler, a horas desencontradas, surgidas pela noite, forçando-me a tornar em descanso uma pausa nos deveres que, almas penadas, não param. 
E li assim, folha a folha, até mesmo às últimas folhas que a teimosia me fez passar para a manhã de hoje e bem poderia ter terminado ainda ontem, mas há aquele resíduo de liberdade que é deixar para amanhã o que bem poderias fazer hoje e assim fiz.
E que livro extraordinário e sobretudo que descoberta surpreendente. Digo isto, bem sabendo que os meus espantos são a admissão pública da minha ignorância, pois Tomaz de Figueiredo tem Obra Completa editada pela Imprensa Nacional, graças à iniciativa daquela outra alma sensível que é António Braz Teixeira. Mas que querem se eu não o conhecia, e só cheguei a ele porque no livro Estátua de Sal de Maria Ondina Braga li uma sua carinhosa apresentação da obra, escrita como a negar-se a apresentar mas tão cheio de júbilo e admiração pela escritora sua conterrânea? E se, estando a trabalhar sobre o Jornal de Crítica Literária para o que depois direi, não desanimei quando Alberto Franco Nogueira (para muitos ainda) seu inesperado autor faz um delicado reparo a uma sua segunda obra, o Nó Cego, vendo nela seriedade mas frieza?
Agarrei-me, assim, a A Toca do Lobo, ademais numa encadernação maravilhosa que alguém com mimo mandou envolver a obra, em macia pelica marron, com letras douradas, incluindo as da menção «prémio Eça de Queiroz (romance)/Concurso de Prémios Literários (1948) do Secretariado Nacional da Informação», menção que por certo condenaria o livro para a fogueira em que os inquisidores contemporâneos, polícias do gosto e serviçais do politicamente correcto, logo o condenariam, visto o ano da edição (1947) e o prémio governamental que recebeu.
Mas eu estou na idade do querer lá saber e já nem luta travo com inutilidades, usando antes o tempo de guerra para ler em paz o que os outros repudiam, e ler até mesmo o que esses tais proprietários do bem e do bom idolatram - sem suporem sequer e nem teriam, insignificante eu - ser tão quisto por seres como o meu ente leitor.
Voltando ao livro e à descoberta. 
Há nele, em todo o seu esplendor, a notável língua portuguesa, a mesma de que cada vez há mais gente a usar menos vocábulos e frases, económicos com os termos porque curtos com as ideias, mas que aqui surge a trazer-me memórias do que ouvia em casa e assim rememoro, palavras que, sem se topar o significado, quase sugerem, logo pela fonética, ao que vêm: o «não pagar a pena estar com pequices», os «codiciosos padrecas», os tecidos «enfeitados de borbetos», a boca «mal desfranzida», o «pontapé [que] foi muito bem assopado», o «como quem arrancasse os pesos e estorcagasse o pêndulo dum relógio», a «cambulhada de filhos» e tanto mais.
E há também aquelas formas de dizer que, de originais, acrescentam ao dito, o feito: «lia-a, lia-a, saltando linhas, atrapalhando páginas», «ia ficando mais vermelho que os corais de um peru, quase lhe saltavam as cordoveias do pescoço», a tia Francisca «aquela alma enérgica e grande demais para corpo tão sequinho, quase só feito de roupa», o «desarreigar da memória», o «jovem levita, fulo, depois de uns palanfrórios casuísticos, dumas alicantinas que deixaram a tia Francisca de gesso. /Pois sim! Levou para tabaco)» e uma torrente de expressões em luxúria que é deleite.
Mas não é apenas prodigalidade vocabular e estilística de que a obra é feita, sim, e muito, aquilo a que alguns detractores de minguado verbo, invejosos, apodaram de "regionalismos", a rebaixar, tentando alçar-se em cima da escória do palavrão soez porquanto inútil, os do que Vergílio Ferreira, bilioso, na sua Conta Corrente chamava [e com vossa licença, eis tal qual, volta Gil Vicente!] «da Literatura de caralhadas». 
Escrito sobre casa em aldeia, surpreendendo dos rurais o verbo, A Toca trá-los no discurso directo e retrata-os com as cores do seu modo de ser e falar.
Há no sedimento desta escrita crítica social aberta, à justiça duvidosa e ao clero prevaricador, de carinho pelos dos baixios da vida, nisso incluindo as senhorias morgadas em miséria envergonhada, mendigos sem ousarem estender a mão, e sobretudo aquela fome de vida e de amor, aquela ânsia de tempo e o desejo de paz no silêncio da criação. 
Livro de linhagem há nele patente desprezo pelo estado vil a que chegaram os que pela origem tinham deveres e se afundaram pelo gozo das liberdades até ao rebaixamento: «Já reparaste na vergonha que é, o geral disso a que ainda se chama fidalguia portuguesa? A pedir vassourada, meu filho, a pedir vassourada! Já quase sem distinguir entre uma espada e um chanfalho de polícia...Não to digo por vaidade, pois não me julgo de melhor sangue do que tantos e tantos, mas, em muitos desse tantos, o bom sangue é o que já secou... Misturado com muita borra...Uns porcos!).»
Livro de desesperada solidão, há, apanhada em instantâneo fulgurante «a multidão dos felizes, os de tão acanhada alma, que se confessavam e eram, felizes!».
Leio, li, pudesse achar tempo, fabricando-o, leria de novo. Descobri outro livro seu, desta feita com prefácio risonho - e como não poderia sê-lo - de Onésimo Teotónio Pereira. E vou comprar todos os que a Imprensa editou, sofrendo-lhe o incompreensível preço usurário, vergonha porque de uma entidade que deveria promover a cultura tornando o ler barato e assim acessível.
Fico por aqui. Voltando aonde comecei direi, citando o excerto final do que escreveu para Maria Ondina: «Apresentar este livro? Um livro destes?! Apresentá-lo só o apresentaria se cada leitor aqui o chamasse e lho lesse». 
Tal e qual. 
Venham, pois, leiam por mim e o que eu não li.

domingo, 13 de outubro de 2019

Robert Walser: a plenitude do Céu

Ler caminhando, ou ler ao caminhar, talvez possa ser assim, que se configure a obra do suíço Robert Walser e o livro das conversas que Carl Seelig com ele manteve quando o encontrou já internado num hospital psiquiátrico, em Herisau.
Patrocinado pela Pro Heltevia, Fundação Suíça para a Cultura,  e editado em Abril, pela BCF, Editores, a obra, que no original alemão se denominou Wanderung mit Robert Walser, vem traduzida por Bernardo Ferro [com revisão de Isabel Castro Silva] e traz na edição portuguesa, assinada em Agosto de 2018, texto de apresentação do curador de Arte, Hans Ulrich Obrist.


A leitura é viciante de tão atraente; de tal modo que dali passei para a busca de toda a obra de Walser.
Um certo instinto levou-me às traduções francesas, se bem que em Portugal haja já parte significativa da escrita publicada: porventura a ideia, mais do que discutível mas que tenho por segura por mero instinto, de que para uma versão a partir do alemão serão o francês e o italiano os idiomas que melhor reproduzirão as subtilezas linguísticas, desde o rigor do vocábulo à cadência do estilo. 
Além disso, trata-se de um modo de escrever poético, luxuriante na adjectivação, embora sem subtilezas estilísticas, mas em que cada palavra vale por si e pelo que onomatopaicamente sugere.
Vindo aqui, que direi do lido sem assassinar a apetência pela leitura?
Falando deste livro de Seelig e das conversas que, entre 1936 e 1956, manteve com aquele que assim acaba por surgir indirectamente biografado, estamos em pleno passeio pela cultura, conhecida como se por uma lenta sedimentação, familiares sendo os autores e artistas, conhecidas as circunstâncias e tudo sempre em simbiose íntima com a Natureza, essa magnífica biblioteca e pinacoteca onde Walser encontra letras e cores, conhecimento e sentimento e o a propósito que ao disperso confere harmonia, mesmo quando surpreendente.
Há, talvez possa dizê-lo, um difuso panteísmo, nessa mansa mística que perpassa pela contemplação extasiada, a alma solitária a corporizar-se pelo que a cerca, em substanciação do que existe pela vida de toda a existência. 
E há, também, direi, nesse vagabundo extravagante e vagueante, uma categoria pessoal senhorial tão rara no mundo de rudeza boçal em que gorgoreja tanta linguagem que se supõe Arte, dignidade na penúria e na renúncia.


Lido o livro em dois fôlegos, li também já Der Spaziergang, traduzido para o francês por Bernard Lortholary e publicado em 1987 pela Gallimard e agora reimpresso em Março. Trata-se agora da escrita do próprio, as suas caminhadas, as suas reflexões: rareiam as alusões literárias, aumentam as menções pessoais, o estilo ganha corpo, longas tiradas em cada marco da jornada, um humor requintado a pontuar sabedoria. Disso se trata, talvez: a obra de um eremita saído do seu presbitério, excerto de vida de um homem de sete ofícios. 
A viagem inicia-se ao sair do seu «gabinete de trabalho ou de fantasmagoria» e precipitar-se na rua. Estou a quase metade de um terceiro livro, outros vêm ao meu encontro, já encomendados. 
Quando gosto, quero saber a extensão máxima do desejo, admitindo mesmo o desapontamento da frustração.
Dir-se-à que esta escrita lembra a que Franz Kafka: não, porque neste, os tectos são rebaixados, os interiores sufocante, em Walser o horizonte é o infinito entardecer e a plenitude do Céu em noite de luar, apaixonado. Chama, sim, numa certa parte, Robert Musil, por um não sei o quê que me surge sem que o saiba dizer; e bem compreendo que se trate de um autor tão prezado por Stefan Zweig, outro viajante pelo território da tragédia, como Friedrich Hölderin, como tantos, errantes e caminhantes.