segunda-feira, 28 de maio de 2018

Monumento à memória


Procurei por ele para escrever este texto.

É um livrito pequeno, dos que facilmente se somem na selva das estantes, onde capas brotam como lianas e letras impressas formam a algazarra da manhã. 

Oitenta e sete páginas em formato de bolso e papel robusto, na edição que tenho da Assírio & Alvim, incluindo apresentação, cronologia biográfica e páginas técnicas da praxe. 

Coisa que sem esforço se desvia do lugar. Assim foi. Encontrei-o, insondável ironia, numa pilha à beira do esquecimento no quarto de arrumos.

«Mendel dos Livros», de Stefan Zweig, breve novela publicada em 1929, em folhetim, no jornal diário vienense Neue Freie Presse.

Li-a há poucos meses, num galope febril, afundada em mantas e paracetamol, em certa tarde de doença de que já pouco ou nada recordo além da névoa de folhas sucedendo-se em íntima peregrinação. 

Com o anónimo narrador penetrei, impelida pela chuva, na atmosfera cálida de um café vienense, e por meio dele no túnel de uma súbita recordação de um tempo e lugar em que conheceu Jakob Mendel. 

O absorto e alheado Mendel. O «pequeno, comprimido e completamente envolvido nas suas barbas» judeu ortodoxo vindo do Leste e feito alfarrabista em Viena, para quem só o amor aos livros existia e por trás de cuja «fonte calcária, suja e coberta por um musgo cinzento» se encontravam, «fazendo parte do mundo invisível de fantasmagoria, como que cunhados por meio de fundição de aço, cada um dos nomes e cada um dos títulos alguma vez impressos num frontispício dum livro». 

A sua era uma vida filtrada pela lente de uma única paixão, servida por uma prodigiosa memória, num impoluto mundo de ideias que o império dos factos não saberia entender. 

Obra enorme de sensibilidade, simultâneo lamento por uma era perdida e homenagem ao espírito, reclama ser lida de coração nas mãos, naquele sítio interior onde habita o que já só em nós existe. 

Stefan Zweig, querendo erguer um monumento ao livro, ergueu-o também à memória, essa ínfima centelha redentora que faz de nós guardiões do tempo em que vivemos e de quem nele existiu. Delgada corda com que nos alçamos uns aos outros do alçapão escuro da aniquilação.