sábado, 30 de maio de 2009

O lugar interior

Consegui ontem, por viajar de comboio, iniciar a leitura do Marcovaldo, o livro de crónicas do Italo Calvino. É uma história abstracta vivida num mundo demasiado concreto. O leitor segue o percurso de uma insignificante folha de árvore, soprada pelo vento, acompanha a sua errática trajectória, antecipa o momento que, torneando o pára-brisas de um automóvel, é sustida amigavelmente pela intersecção de uma esquina de parede e uma corda esticada para estender roupa. Os figurantes neste teatro rústico vivido em ambiente citadino têm todos nomes grandiloquentes, clássicos, greco-latinos. A Itália é uma criatura recente, a língua italiana precede-a criando uma Pátria cultural antes de haver uma Nação de cidadãos. Leio Calvino, essa babel linguística magnífica, no original, allegro cantabile, vivace, con brio.

domingo, 17 de maio de 2009

O calor de um sentimento

Ainda não voltei a ler o livro de Rachel Jardim. Talvez o faça ainda esta noite, aproveitando um qualquer instante. Acho que preciso da companhia dessa leitura, retrospectiva, calmante, reintegradora.
Venho aqui esconjurar um momento doloroso que com o livro nasceu esta manhã. Fala-se nele de Tia Inaiá, que casara com tio Renato, arquitecto italiano «que tinha a desproporcionalidade longilínea das figuras de El Greco». Renato era «um ser profundamente sofrido»: «estivera preso durante a Guerra, quando a Itália invadira a Etiópia. Defendera a Etiópia. Contava sempre que, tendo sido aprisionado e estando a caminho de um campo de concentração com outros prisioneiros num carro aberto, um bando de pobres mulheres etíopes fora ao encontro deles, oferecendo frutas. Uma não tinha nada para dar e estendeu o menino que amamentava, para que Renato segurasse por uns instantes e sentisse o seu calor».
Lê-se isto e é um desabar íntimo de tudo quanto ainda existe no precário edifício dos sentimentos. Que pobres somos, afinal, tartamudos, belfos, hesitantes em gaguez, na nossa tentativa de exprimir carinho. E por uns instantes sentisse o seu calor...

Acontece

Oferecerem-nos livros, essa coisa magnífica. Maná para quem esgota o que tem em livros e por vezes, já sob o efeito alucinogénico da livraria, se atreveria a ir para além do esgotamento e do que já não tem. Oferecerem livros a quem quer livros, todos os livros. Oferecerem livros a quem foi deixando ficar livros em casas agora alheias. Oferecerem livros, pelas alminhas, pela sua saúde, oferecerem livros que tenho fome de ler, oferecerem livros muito e muito obrigado bem haja e Deus o guarde. Oferecerem livros, essa ladainha que é ofereceram-me livros.
Rachel Jardim, brasileira, escritora. Teve a generosidade de me oferecer seus livros, com amável e sentida dedicatória. Comecei ainda ontem um deles, o que é meio diário, meio relato íntimo, meio crónica de família, o que tem desenhos de João Guimarães Vieira.
Um dia a História far-se-á assim, para se saber como era, como se sentia, como se vivia, com estes relatos do interior.
Chama-se Os Anos 40. Foi publicado no Rio de Janeiro por J. Olympio, Editor. A obrinha tem esta coisa de notável: na página final, como mandava a tradição, tem as notas do editor e da tipografia. Diz que foi confeccionado - palavra ímpar que desapareceu do mundo editorial, com sabor a gastronomia e a iguaria - nas oficinas dos Estabelecimentos Gráficos Borsoi, S.A. em Novembro do ano de 1973. Até aí tudo bem, como se diz, em modo cantante, nesse nosso Brasil. Mas continua: «sesquincentenário do nascimento de Gonçalves Dias, sesquincentenário da morte de Hipólito José da Costa, centenário do nascimento de Laudelino Freire, Rodolfo Garcia, Santos Dumont..e assim.
Já não há disto, minha gente, um editor que mede os anos por datas de vida e morte de seus escritores, como se não houvesse na Literatura outro tempo nem outro modo de o contar.
Vou na página 22 de 119. Se hoje puder e este sol magnífico não me tentar com sua mão macia ou o trabalho não me vencer com sua garra aguda, tentarei ler mais.
Ontem estive com o tio Mário: «nunca vi ninguém partir fatias de queijo tão finas e, durante muitos anos, pensei que aquilo fosse a prova máxima de boa educação»; com «seu» Bernardo «dizem que morreu de desgosto, de surpresa, de perplexidade (foi um enfarte)»; com Florinda que «era parteira e fazia abortos e amor, quase livremente»; fui ainda ao cinema ver O Monte dos Vendavais, que nesse além-mar de língua portuguesa se chamou O Morro dos Ventos Uivantes, e com ele a imaginação em vez de vida: «A vida era mais imaginada do que vivida. Não havia sofreguidão em viver. O ritmo era lento. Um dia me perguntaram - o que vocês faziam em Juiz de Fora, naquela época? Esperávamos. E nessa espera, fora e dentro de nós, as coisas aconteciam». Lê-se isto e como se aprende que no mundo de hoje, em que tanto sucede, afinal, nada acontece.

sábado, 16 de maio de 2009

Contrafatta Natura

A caminho do Pingo Doce fui à Pó dos Livros, aqui ao lado, e encontrei lá o Marcovaldo do Italo Calvino, naquela edição apetecível da Oscar Mondadori. Estive há tempos em Bolonha e trouxe de lá uns quantos, a esmo, por querer trazer todos. Tinha lido em português Se uma Noite um Viajante. Outro dia reparei que, entre tantos, faltavam-me tantos. Juntei-lhes hoje mais este, reconstituindo a família, que está numa estante giratória à janela do meu quarto. Em dias de sol apanham sol. Há pouco entreabri-lhe a apresentação para me maravilhar, sabendo que me maravilharia. «In mezzo all cità di cemento e asfalto, Marcovaldo va in cerca della Natura. Ma esixte ancora la Natura? Quella che egli trova è una Natura dispetosa, contrafatta, compromessa con la vita artificiale». Fantástico! Sabem como aprendi italiano? A ler italiano. Esfomeado de ler.

Um moço que já morreu

Muitos conhecem-no como ministro dos Negócios Estrangeiros do anterior regime político que caiu com o 25 de Abril. Tantos reconhecem-no como o autor do monumental Salazar que ainda é das melhores biografias que se escreveram sob o o homem que governou Portugal, para o mal e para o bem, durante cinquenta anos. Fui descobri-lo neste seu livro de crítica literária. Editou-o a Portugália em 1954. Talvez por lhe conhecer do pensamento político a faceta conservadora fui ler o que dizia sobre Carlos de Oliveira. Imaginar-se-ia distante, frio, crítico do envolvimento social do seu autor, apto de desmontar-lhe qualquer momento em que lhe surpreendesse o panfleto, a militância, sabido como é que o autor de Pequeno Burgueses entroncou na aguerrida família do neo-realismo onde pontificava tanto proselitismo e todos da Oposição ao Estado Novo. Nada disso. Sereno, honrado, Franco Nogueira rende-se ao rasgado elogio. Estuda a Casa na Duna, analisa o Alcateia, disseca Uma Abelha na Chuva. E termina, depois de semear mimos: «Se o ritmo da carreira literária de Carlos de Oliveira não for quebrado ou desviado, o romance português poderá contar mais um dos seus raros e grandes cultores». Ah! grandeza humana.
P. S. O exemplar que tenho encontrei-o num alfarrabista. Traz ainda uma amorosa dedicatória manuscrita em esmerada caligrafia: «Para a querida Luizinha esta recordação longínqua de um moço que há muito já morre, esta lembrança de uma velha pedra da calçada que se agita, esta oferta sem expressão nem mérito que no entanto simboliza tudo, of. do Alberto»

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Uma natureza violenta

«Receoso e susceptível», assim nos viu, como povo, Miguel de Unamuno, um «povo triste mesmo quando sorri», uma Nação de gente «mais apaixonada do que sentimental». Enfim, «um povo de suicidas».
É a paixão que traz aos portugueses a vida e os atira para a morte.
Suicidou-se Herculano por isolamento, Camilo e Antero, a tiro. Os nossos grandes vultos são grandes condenados. Os menos corajosos estiolam-se. Suicidas os que matam e os que morrem. Suicida Buíça ao matar Dom Carlos, suicida foi o Rei.
Impossível ler Unamuno e não ir ler Manuel Laranjeira, esse extraordinário neurasténico, médico, que por isso tão bem se conhecia e nos conhecia. Impossível dele não vincar a frase «em Portugal todos temos os olhos vestidos de luto por nós mesmos».
Laranjeira e Unamuno encontraram-se casualmente em Espinho no dia 8 de Agosto de 1908. Duas almas trágicas, a do português analítica, o espanhol paradoxal. Recordo-vos de Laranjeira a perplexidade que me arrancou o seu estudo sobre a santidade como patologia, o misticismo como doença, o êxtase como terapia; o carinho que devotou à «Cartilha Maternal» de João de Deus. Mas quero recordar-vos sobretudo o que foi a sua dolorosa experiência sentimental, a sua «Augusta», modesta, plebeia, mas fonte de seus amores e causa de suas angústias. Inadaptado aos erros do coração, Laranjeira sabia que «o amor quando o não matam, morre, e morre como uma tarde de Setembro». Leio no seu Diário Íntimo. «Sou uma natureza violenta, silenciosamente violenta – que é a pior maneira de se ser violento», escrevera a António Carneiro, pintor. Violentou-se. Também com um tiro na cabeça, em 22 de Fevereiro de 1912. «Decididamente isto há-de acabar mal», confidenciara a Amadeo de Sousa Cardozo. Tinha então 34 anos.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Janelas fechadas

Há na Mimosa um quiosque que vende jornais e revistas. Talvez tabaco para quem fumar. Foi nele que esta tarde comprei a revista Ler. Sentei-me a ler a Ler. Veio um chá de menta e scones. Sem doce porque não posso adoçar-me. O dia esgotava-se e eu estava cansado. Dali a pouco tinha de estar numa conferência. Mas agora, na rua, esforçava-me por não levantar os olhos do que lia. O mundo tinha desaparecido, todas as janelas estavam fechadas. Lia sem nexo. Evitei o Graça Moura, poupei-me ao Agualusa. Para me animar a ler mais, comecei pelo fim. Vi então esta livraria. Fica a norte de Nova York. Aninhei-me nela, devolvido a casa.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

O inacabado momento

Extravagante, insolente, próximo do paroxismo e do pânico, eis Guilherme Augusto Cau da Costa de Santa Rita, Santa Rita Pintor como passou para a posteridade, uma posteridade para que se lançou aos vinte e oito anos. Estive com ele mais de perto há uns tempos quando tive nas mãos, por confiança extrema, o número dois da revista Orpheu. A meio uma estampa, litografada, composta em Paris em 1913, a que chamou de «compenetração estática interior de uma cabeça - complementarismo congénito absoluto». Esta noite abri o álbum que Joaquim Matos Chaves lhe dedicou em 1989, ano do centenário do seu nascimento, e que a Quimera editou. Progredi com muita incomodidade pelas páginas em que o anedótico, a blague, vão lançando a peçonha do burlesco, do clownesco, menorizando a grandeza do delírio, do éter do êxtase. Quase no fim surgiu a académica Cabeça de Velha com que foi laureado com vinte valores na cadeira de expressão de Veloso Salgado. O sorriso ligeiramente tombado, uma aura de viuvez, há nela uma névoa no olhar, uma avó a retirar-se da família, do mundo, da vida. Mas foi com o inacabado Louco que me aproximei da meia-noite numa noite em que hesitei sobre se teria algo a dizer. Boquiaberto, um grito feito de dor sem dentes, olhos esvaídos, ele é um sangrar-se pela tela, oblíquo, transversal, torturadamente repulsivo.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Personagem e intérprete

Imaginam-se sons, onomatopaicos, antecipam-se luzes. Ensaia-se o movimento, a pausa, o nada no espaço e o intervalo no tempo. Teme-se a apoteose do grande final. Em breve será vida. Outros a representarem, a realidade a explicar a imaginação. No dia 21.

domingo, 3 de maio de 2009

Um certo frenesi

Subi hoje, esbaforido de calor, a rampa da Feira, e ei-lo o Marquês da Bacalhoa, do António de Albuquerque, descendente pelo lado paterno do Afonso de Albuquerque, do lado materno de João de Barros. Apanhava sol. Diz no exórdio Paulo da Costa Domingos: «Ele tem tido uma vida de aventuras: bateu-se em duelo em Madrid, caçou no Cabo com lordes, tocou guitarra em Trouville e teve uma loja de instalações eléctricas em Itália». Morreu de cancro na bexiga, a gritar e a mijar-se, a miséria a rir-se de quem escreveu a escarnecer. Agora está aqui a meu lado. Junto, no mesmo tomo, A Execução do Rei Dom Carlos, do mesmo. Tem como menção ter sido terminado na Ermijeira, em 6 de Setembro de 1907.

sábado, 2 de maio de 2009

Os Ramos Entrelaçados

Danilo Barreiros escreveu, Pedro Barreiros desenhou a capa, com uma pintura chinesa Os Ramos Entrelaçados das Flores de Ameixoeira. É um pequeno fascículo, editado em 1961, edição de autor, impresso na Bertrand, sobre a morte e o testamento de Camilo Pessanha. Cruzei-me hoje com ele na Rua de Anchieta, onde está a feira dos livros usados. Trouxe-o comigo. Deve-se a Danilo Barreiros ter copiado, na sua máquina Underwood, «com fita de duas cores» as Elegias Chinesas de Camilo Pessanha. «Foi este material que António Quadros utilizou para a publicação do texto na Europa-América com as obras completas de Pessanha», diz Pedro Barreiros que, em 1999, as editaria, homenagem de aluno que foi no Liceu de Macau, ao Tap Siac.