sábado, 31 de julho de 2021

A nobreza de não saber viver

 


Tenho apreço pelas fotobiografias, porque nelas mais do que ler, vê-se o biografado, forma de aumentar o nosso sentir sobre ele, como se nos fosse restituído.

Claro que são, amiúde, obras de devoção e esta, que estava à minha espera depois de uns dias de descanso junto ao mar, anuncia-se como uma «obra de devoção filial» e há, por nisso nelas,  menos nesta, perdoável exaltação do biografado: aqui é a voz do sangue dos seus que se perfilam, em escrita respeitosa, eles a quem lhes deu o ser mas deles tão ausente esteve pelas circunstâncias que a vida lhe impôs e fruto do que, ser complexo e tenso, quis fazer da vida. 

Estudei Literatura no Liceu a partir da obra que António José Saraiva compusera a meias com o seu companheiro de uma vida, Óscar Lopes, apesar de o meu professor de então ter feito feito notar que o Reitor lhe havia feito saber e pedido que dissesse que se tratava de obra que não podia ser aconselhada. Razões, percebi mais tarde, decorrentes da filiação comunista de Saraiva, com a qual romperia em termos graves e que o decorrer da vida acentuaria.

 Vejo aqui que esse notável estudo sobre a História das Literatura em Portugal, teve vinte e uma edições, e foi escrito nas mais penosas circunstâncias, afastado o autor do ensino, confinado de meios económicos, a obra publicada com dificuldade, assim como a sua "História da Cultura em Portugal", editada na década de cinquenta, em fascículos, pelo "Jornal do Foro", a revista dirigida pelo Advogado Fernando Abranches Ferrão.

António José Saraiva marcou o seu tempo pelo inconformismo e este livro, que Ernesto Rodrigues prefacia, é disso exemplo, quer pelo que vem escrito por seus filhos, António Manuel, José António e Pedro António, quer pela significativa antologia que o guarnece. Ao lê-lo, vem à lembrança a rebeldia de um Agostinho da Silva.

Levada a subtítulo, a frase «a intimidade de um intelectual indomável» é rica de conteúdo, mas a que me fica como exemplar é a que lhe volveu Vitorino Nemésio, seu mestre, quando, a rematar uma iracunda conversa entre ambos, sobre a nota a atribuir a um aluno, e depois de Saraiva ter tido o arrojo de lhe desligar o telefone na cara, rematou o que viria a converter-se num processo disciplinar: «Saraiva, você tem a nobreza de não saber viver».

É esta a narrativa de uma vida, os altos e baixos, as polémicas, a ruptura política, o «arco tenso» dos enamoramentos, a frugalidade estóica. Nascido em Leiria, com família originária de Donas, exilou-se em Paris, ensinou na Holanda, escreveu em Macau.

A vida interrompeu-se-lhe ao falar de Fidelino Figueiredo. Quer o que seja, acaso ou predestinação, é um dos pensadores de quem reuni quantos livros me foi possível e por quem nutro um apreço feito de sensibilidade comum.

Aqui ficam estas notas. Do filho José António fui companheiro de escrita no "Comércio do Funchal», o jornalinho cor de rosa onde se albergavam quantos eram do "contra" na década de sessenta; dirigido por Vicente Jorge Silva, vejo aqui uma fotografia em que reencontro, enfim, a fisionomia daquele que para mim era então apenas um correspondente a quem enviava, dactilografados em meia folha de papel, os meus artigos incipientes, fruto de vinte anos de atrevimento: sorriso largo, tão novos éramos, Luís Manuel Angélica.


domingo, 18 de julho de 2021

Genoveva de Lima, a elegante pluma

 


Li o que Genoveva de Lima Mayer Ulrich [1886-1963] escreveu, com arrebatamento e elegância, sobre Carlos Félix de Lima Mayer, seu pai [1846-1910]. Um artigo de jornal, nosso contemporâneo, achafurdando por mexericos sobre a sua vida social e íntima, para gáudio dos alarves, chama-a, com selvática injustiça, uma «escritora medíocre».

Casada com o Embaixador Rui Ennes Ulrich, duas vezes ministro plenipotenciário em Londres, a sua casa, hoje sobrevivente, em Campo de Ourique, animou um requintado salão literário. Há uns anos, graças à gentileza do seu actual curador, Alfredo Magalhães Ramalho,  tive a grata oportunidade de ali falar sobre o texto de apresentação que escrevi para a edição, enfim traduzida do italiano, da obra "O Príncipe" de Nicolau Maquiavel. 

O livro,  publicado em 1945, editado pela Livraria Luso-Espanhola que ainda conheci na Rua Nova do Almada,  é uma biografia de uma pessoa e retrato de uma época, dando o título sinal que resuma a obra: "O único vencido da vida que também o foi na morte».

Discreto membro do grupo "Os Vencidos da Vida", esse escol de primeira linha da inteligência combativa do século dezanove, foi esforço carinhoso para «baixar as pontes levadiças no castelo do esquecimento, revogar o ostracismo, esconjurar o silêncio» daquele ser propulsivo que, propiciando meios para que outros deles usufruíssem, se recolheu à discrição, ficando assim sujeito ao «emudecimento avaro dos seus contemporâneos», esse silêncio nascido na «conspiração subtil em que colaboram o inconsciente e a distração num sentimento fratricida inconfesso, onde vagamente giram despeitos subjacentes e conivências herméticas, sepultando na mesma cova a gratidão e a dívida!...»

Ler o livro, hoje quase já só em bibliotecas, como a Biblioteca Nacional ou a Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian,  é surpreender na intimidade toda uma plêiade magnífica da cultura e sensibilidade, achá-los reunidos na Quinta da Cruz do Taboado, de Lima Mayer, areópago de «onze menestréis românticos, talvez irreverentes vagamente truculentos, como tudo quanto é moço, mas sem a morbidez fatalista e acusatória daqueles que, julgando conhecê-los, lhes conferiram desígnios demolidores e negativistas»; mas é também seguir a trajectória, ascencional primeiro, e depois em rápida decadência, do biografado a partir do momento em que «a alma do vencido começava a arrefecer antes do corpo: a desolação penetrava-o como lâmina mortal dum gládio invisível». 

Sobre Lima Mayer, pobre, em progressiva cegueira, isolado na sua casa às Janelas Verdes, sem companhia que apenas Jaime Batalha Reis consolava, mas já em vão, aproxima-se o momento em que «não era possível viver naquela jugulação como um destroço aos tombos», põe termo à vida com um tiro de pistola. Afinal como Antero de Quental.

Espírito tremendo de irrequieto, nada tendo escrito, Carlos Félix foi, porém, activo contemporâneo, mas em permanente «exílio incognoscível», entre tertúlias e salões,  de João de Deus, «o poeta amorável, o sonhador dos ritos ternos, o contemplativo ingénuo e forte como alma de criança e, no peito, toda uma orquestra de cânticos matutinos soltos pelos jardins de Deus», de Eça, que Manuel Rezende lhe apresenta como o «José Maria Eça Mefistófeles de Queiroz, meu velho amigo, que, dentro das botas, esconde os seus pés de chibo», do fugaz Camilo, o severo Herculano, «rodeado de admiradores submissos e de damas fanatizadas», Antero de Quental, «que, nessa altura, já vinha marcado com sombrias inclinações», Ramalho Ortigão, «em briga elegante e empoada com o racionalismo em bronze de Oliveira Martins», este «o herói da sinceridade do pensamento», tantos, afinal, na vida literária, assim como na diplomática, aqui em elegante companhia em Londres com o Marquês de Soveral, embaixador em Londres, figura lendária que se tornou íntimo do Rei Eduardo VII, estimado pela Rainha Vitória e pela Rainha Alexandra, da Dinamarca, que ambas o condecoraram.

Li o livro, há uns dias. Guardo dele, hoje que vim aqui deixar da leitura esta breve nótula, a sensação requintada do que foi, no seu mais esplêndido fulgor, esse intervalo da "Belle Époque"; entre os reposteiros da sociabilidade convivial, a pulsão trovejante de uma época de ruptura, «torneio de fúrias em desalinho, excelentes, higiénicas, que punham correntes de ar na temperatura anquilosada pela espessura dos santos».

Tudo quando cito são expressões de Veva de Lima, como ficou conhecida por este "petit nom". Por aqui se vê que medíocre é quem tão mediocremente a viu, mas isso quanto menos importa.