domingo, 18 de abril de 2010

Dono de si mesmo

Ainda tentei ler seguido para tentar acabá-lo, ao volume V das Páginas do Ruben A. de que li a parte final e mais dois terços desde o princípio. Falta o meio. Sei que são trechos soltos mmas mesmo assim. «Gostava de passar o Natal fora» numa daquelas «quintas antigas, com um brasão maior que a fachada, onde fosse dono de mim mesmo». Ah! «Entre a Póvoa de Lanhoso e Cabeceiras de Basto»! É na página 225.
Ele gostava mas, coitado, lá se foi para a terra onde não há Natal. Viajava. Apaixonado. O coração traíu-o, esgotado de tanto. Dono de si mesmo hoje está quase esquecido. Tem viúva e essa coisas todas. E A Asírio que lhe editou os livros. E esta foto, de chapéu na cabeça, o cabelo a faltar-lhe.

A efémera traição da sobrevivência

Muitos conhecem Ferreira de Castro, embora Ferreira de Castro comece a deixar de ser facilmente legível. Fala de um tempo que já não há. De um Portugal em que os Emigrantes éramos nós.
Hoje, à literatura do efémero só resiste a literatura da intemporalidade. Ora para a descobrir nele, com a Eternidade e nela a insone condição humana, e preciso lê-lo. E estão a deixar de o ler.
O que muitos não sabem, porém, é quem foi a mulher de Ferreira de Castro. Escreveu como «Diana de Liz», chamava-se Maria Eugénia Haaz da Costa Ramos. Multiplicou-se em escritos na imprensa, esvaiu-se em dispersos.
Nasceu em Évora, como Florbela Espanca, morreu em 1930, o ano em que Florbela morreu. Viviam juntos há cinco anos. Nesse ano o escritor publicara A Selva.
Ela foi, disse-o Jaime Brasil, sua «companheira, mãe e irmã».
Estive em tempo com o livro póstumo que, desesperado por tê-la perdido, seu marido fez editar, em 1933, pela Guimarães: Memórias duma mulher da época. Talvez o não consiga ler, a «psicologia da época» a diminuí-lo, eivada de moralismos, mesmo quando tolerante para com a audácia amorosa. Um mundo em que a frivolidade esconde a generosidade de um coração insensato, ansioso de dar.
O que me tocou no livro é ele não ter grandeza de estilo, nem densidade de análise e, no entanto, ver Ferreira de Castro, laureado, prestigiado, senhor já de si e da sua obra, com o coração dilacerado, a dedicar-se, desveladamente, para que aquela que começara a «contemplar a vida no milagre e no pavor de toda a sua extensão» pudesse ver a luz.
Ele foi o homem que, estando a morrer, considerara traição ter-lhe sobrevivido. Em 1938 casaria com a pintora Elena Muriel.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Irreparavelmente casual

Às vezes uma pessoa estende a mão e lê qualquer coisa que esteja exactamente à distância do braço. Isso quando se tem a certeza que se encontra à mão o que se gosta e o objecto do desejo errático é o querido certo. Foi precisamente assim e apareceu-me La Invención de Morel de Adolfo Bioy Casares que diz na capa ser «una extraña historia de amor protagonizada por un hombre y una mujer que viven existencias incompatibles en espacios y tempos rivales». A narrativa centra-se neste momento final que é o princípio e aliás toda a história: «acostumbrado a ver una vida que se repite encontro la mía irreparablemente casual». 

terça-feira, 13 de abril de 2010

Molitva Russkikh



É o hino do Império Russo que baniu a Polónia do mapa. País irmão do nosso, mais o heroísmo e a resistência, Apóstolo das Nações. E, no entanto, a beleza engana, como um exibicionismo de falsa ingenuidade. E Deus entristece-se, tornando-se invísivel e inacreditável.

domingo, 11 de abril de 2010

A pedra de toque

«A eternidade repetitiva pode parecer atroz ao espectador; é satisfatória para os seus indívíduos». Disse-o Adolfo Bioy Casares no seu incomum livro La invención de Morel. É uma legitimação inteligente da angústia de Sísifo. Redigida meticulosamente a frase resiste a uma aprimorada hermenêutica. Note-se que não há nela sequer um «porém» adversarial que torne o seu segundo segmento uma contradição ou uma excepção ao primeiro. Aqui a satisfação é como uma realidade tão regra geral como atrocidade. Repare-se que o que é atroz está relativizado por um «parece» que degrada a asserção pela desvalorização do observar que a afirma, enquanto que a satisfção «é». Constata-se, enfim, que a rude e dolorosa atrocidade corresponde a medíocre e quase insensível satisfação: a eternidade repetitiva «é satisfatória».
Eis a grande literatura, cinzelada em pedra polida até que o remate final e o polimento total tornam cada frase a pedra de toque de uma magnífica construção.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

O momento da verdade



Picasso negava que o quadro fosse seu. O outro dizia-lhe «mas Pablo eu vi-te pintá-lo». Picasso rematou: mas eu posso pintar um falso Picasso como outra pessoa qualquer. É em «F for fake», um momento genial em Orson Welles, esta noite na Cinemateca.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

A invenção das palavras

Há um comboio que esconde outro. Fernando Pessoa escondeu, com a sua extensão, José de Almada Negreiros. Fui buscá-lo à estante esta noite para ficar numa só frase que tanto basta: «nós não somos do século de inventar palavras. Nós somos do século de inventar outra vez as palavras que já foram inventadas».

terça-feira, 6 de abril de 2010

Anarchy


Mesmo que a minha aparência o desminta, acreditem que se escrevesse música era esta; se a representasse era assim, se tivesse alguma coisa a dizer ao mundo era isto. Talqualmente assim, ainda que:

Is this the M.P.L.A or
Is this the U.D.A or
Is this the I.R.A
I thought it was the UK
Or just another country
Another council tenancy
I wanna be Anarchy
And I wanna be Anarchy
(Oh what a name)
And I wanna be anarchist
I get pissed, destroy!

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Kaos

O livro saíu postumamente. Não foi revisto pelo autor. Talvez por isso a edição esteja cheia de gralhas e de erros e mesmo de palavras incompreensíveis. Se a ideia foi publicá-lo tal qual o manuscrito, isso merecia aviso. Mas aviso não há. Nem no-lo diz o prefácio de José Palla e Carmo, prefácio que por sinal vem no fim, onde se alerta para o facto de o autor considerar que esta é a sua melhor obra, mesmo depois de ter escrito a Torre de Barbela.
O livro é soberbo, pela ironia, pelo paradoxo, pelo magistral modo de dizer: «o cheiro bafiava, a respiração ofegava, o suor pivetava».
Ruben A.inventava palavras, mas não inventava realidades. Com ele a realidade é a Literatura. O Kaos é «uma procura no dentro de um de nós que é eu».

sábado, 3 de abril de 2010

O genial amanuense

Para quê viver na ânsia de ler livros novos se ainda para ler os livros que não se acabaram? A verdade, além disso, é que a leitura não pode ser uma voragem nem uma vertigem, mas um refastelar da sensibilidade, um sossego da alma, mesmo quando é um vulcão de sensações. Hoje fui buscar a longa viagem que o João Céu e Silva fez com o António Lobo Antunes, para redimir a minha má consciência de ter estado tantos dias sem ler e para exorcizar fantasmas em relação não à sua escrita, mas sim quanto à sua pessoa.
Claro que há aquelas coisas que me exasperam. «O seu dia de escrita habitual começa pelas dez da manhã. Escreve até à uma da tarde. Regressa ao trabalho pelas duas da tarde e embala de novo até às oito da noite. Interrompe e continua uma hora depois até por volta dasonze da noite. Não há diferença entre os dias de semana e dos do fim-de-semana, todos são dias úteis, mesmo os sábados e domingos», revela o entrevistador. Uma pessoa lê isto e imagina aqui um amanuense da sua própria escrita, submisso ao livro de ponto, de manguitos e pala sobre os olhos, a esgravatar laudas, fólios, fiel ofocial da repartição literária, copista, afogado em serões num mundo de cegos, em breve o arquivo e a fama precária, a glória escusa e a esperança de sobreviver. Genial, porém.


sexta-feira, 2 de abril de 2010

Graças pela sobrevivência

Lembrei-me esta tarde que quando escrevi o texto de apresentação de uma nova edição de O Príncipe, de Maquiavel, que a Presença fez traduzir a partir directamente do italiano, deixei ali este excerto: «Descobri que para ler este pequeno livro e entender a complexidade que se esconde por detrás da sua vulgar linguagem importaria conhecer o seu autor, retirá-lo do imaginário colectivo, que ora o transformou numa espécie de cortesão alcoviteiro de tiranos, com eles partilhando os arminhos do poder, ora em republicano desprezado pela República, amigo do povo e dele seu discreto defensor, e ir buscá-lo ao momento de exílio, «res perdita», sofrido o desemprego, sujeito à prisão e à tortura, o dia gasto em convívio com gente boçal, a noite esgotada em fantasias delirantes em companhia dos Antigos, a dura modéstia do quotidiano e a ânsia de obter «qualche cose» dos de ‘Medici ou do Papa, um de ‘Medici também , algo que lhe devolvesse o sentido de utilidade e algum rendimento, como nos tempos idos em que era o Secretário da Segunda Chancelaria da cidade de Florença. Filho de advogado literato e por isso pobre, Nicolau Maquiavel, cultor das letras, pobre morreu também. Legou-nos, inédita, uma obra que é um sonho fantasioso de grandeza, tal como o estranho sonho que terá tido, segundo consta, antes de morrer».
Tinha então cinquenta e oito anos, a idade com que ele morreu. Neste dia simbólico da morte e da ressureição, dou graças a Deus por ter sobrevivido.