sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A Bandeira Preta

Encontrei-a no jardim da Gulbenkian, em exposição, há uns dias passados. Fotografei-a como me foi possível, com o telefone. As que conheci na minha juventude e me traziam à aldeia de Abravezes livros que eu nem imaginava que existiam, eram cinzentas. Soube mais tarde que o Herberto Hélder trabalhou numa delas, percorrendo o país, distribuindo cultura, instigando ao saber.
Deveu-se à organização dessas Bibliotecas Itinerantes ao escritor Branquinho da Fonseca, coadjuvado por António Quadros. 
Em homenagem, a Fundação reeditou «a título excepcional» o Boletim Cultural que em Janeiro de 1984 lhe dedicou.Trouxe então um exemplar. Li-o hoje, em viagem, para me lembrar do pouco que sabia sobe este homem que foi mais um dos licenciados em Direito que pediu asilo à Literatura.
Como o mundo é tão pequeno. Fui ali encontrar um estudo sobre a presença da mulher na sua escrita da autoria de Natalina Andrade Grilo. E um sentimento de comoção tornou-se pudor. Não fui capaz de o ler. Amanhã voltarei. As memórias, as dolorosas sobretudo, são como uma reticência que nos envergonha. 
Branquinho da Fonseca, filho de Tomaz da Fonseca. O seu livro "Bandeira Preta", o único que li, começa assim: «Pedro abriu uns grandes olhos de espanto»...

O Filho de Mil Homens

Já não esta noite mas na noite anterior ainda consegui iniciar a leitura do último livro do Walter Hugo Mãe, "O Filho de Mil Homens". E que tremenda surpresa para a alma, para os sentidos, para a consciência social, para o lado do leitor que ama o quê odiando o que está a ler!
Tinha dado conta da obra por uma referência num jornal em que o autor teria revelado a um auditório de mulheres ou com muitas mulheres ou o que seja que metia mulheres da sua frustração de não um filho tendo chegado à idade a que chegou. O que na boçalidade do relato ou nem sei se na vulgaridade do sucedido teria dado azo a furores uterinos e histeria incontida, como se de sequiosas candidatas em disputa pelo acto, logo ali, de que pode surgir filho.
Felizmente tudo isso foi - a ter sido assim - um mau momento do apresentar um extraordinário e pungente livro.
Ganhei o hábito de vir aqui anunciar logo como estou de relações com o que leio. Congratulo-me por estar a lê-lo. É difícil quem consiga ir tão ao íntimo da intimidade feminina como sucede com Walter Hugo Mãe. É difícil encontrar quem com uma só palavra consiga rachar a brecha de todo um novo mundo, como quando escreve: «Que ridícula soava a ideia de uma triste anã querer amar se o amor era um sentimento raro já para as pessoas normais. Para as pessoas». Ponto, para as pessoas! Vejam: ponto, «para as pessoas» e a brutalidade feroz da despersonalização, a redução daquele ser defeituoso a algo de animalesco ou mesmo coisa inerte, fora, em suma, do mundo das pessoas que o são porque normais. Enquanto normais. Sendo normais.
Diz a contra-capa que é «o mais delicado e afectivo de todos os livros de Walter Hugo Mãe». Duvido. Li o Apocalipse dos Trabalhadores e encontrei nele a mesma comunhão anímica, a mesma sensibilidade, a minha epiderme que aqui revejo.
Um grande livro! Vou continuar com ele. Hoje já não. A história dói. Uma belíssima história de amor.

domingo, 16 de outubro de 2011

Retornando ao mesmo livro

Mais uma folhas até que, vencido pelo cansaço, adormeci, e mais umas quantas até que, entretanto, o comboio chegou ao seu destino. E que interessa quantas folhas foram? E quantas faltam? E que importa se eu escrever sem ir lá dentro, para conferir qualquer citação, agora que o livro está no quarto de dormir para que tente voltar a ele, mais logo, se for capaz, se houver tempo, se outro livro se não interpuser, mesmo que seja um livro antigo, que já devia ter lido, ou que já tenha lido?
Que importa se o sentimento vivido ao lê-lo é homólogo à sensação de quem escreveu? E que importante haverá para dizer naquele relato de tragédias individuais que foi o fim da descolonização em Angola que não seja a incapacidade de o saber melhor pôr em palavras, nos grandes e nos pequenos momentos, no atropelar do tempo e na brutalidade dos sentimentos, e por isso estar a ler aquele livro é convidar todos quantos a lerem aquele livro?
E que mais poderei acrescentar, de total identificação da personagem com a autora se não dizer que já ia a folhas tantas que tais quando me apercebi que era um rapaz quem ali estava e seus pais, e sua irmã, a viver o fim de um Império Colonial, o sangrento nascer de um novo Estado, fruto do cair de caduco de um regime e não ela própria ou talvez ela mesma alheada de si e nele irmanada?
Dulce Maria Cardoso é uma grande escritora! Li o seu último livro receando ao virar de cada folha. Caminho neste, entre os escombros da vida, como quando li "Os Meus Sentimentos". Um extraordinário livro, "O Retorno". Que importa se tudo fizer para, lendo devagar, prolongar o chegar ao fim?

domingo, 9 de outubro de 2011

O eterno retorno

De repente salta-nos como familiar o mundo que não vivemos mas sabemos ter sido vivido. E que tantos viveram nas suas peles, os últimos dias do "mundo branco" em Angola. E o mundo de antes disso. O último instante do último avião da ponte aérea. A devastação raivosa para que nada fique que eles aproveitem, seja os camiões, e que se incendeiem com gasolina, ou a cadela, que se matará a tiro. Eles «os pretos».
Um livro de onde, de repente, nos salta, ofensiva, a verdade inconveniente de um Exército que já não faz a guerra e já não consegue defender a paz porque serviu um regime e fez uma revolução, onde «era bom que os soldados portugueses fossem antiputas, anticerveja e antiliamba». 
E era tudo assim quando aquele dia deixou de ser aquele dia. O anseio de uma Metrópole que deveria ser seguramente um lugar pequeno e onde todos se encontrariam e encontraram.
Leio "O Retorno" de Dulce Maria Cardoso. 
Li-lhe todos os livros e falei deles quase todos aqui. Adivinha-se pelo título que este é sobre retornados, o seu fantasma pessoal, a sua mundividência, ela que escreve com uma sabedoria que impressiona como se tivesse tido, prévias, mil vidas, como o senti ante "Os Meus Sentimentos", uma estupenda obra. Ela que vive reclusa num mundo em azul, qual mulher em ilha de faroleiro, ela cuja escrita é um longo sangrar como um caco de vidro cravado num pé, e com a hemorragia a sujar-se o leitor com a longa memória das feridas da alma que não resolveu.
Passei pela cerimónia do lançamento do livro. Para um abraço e para me refugiar no livro. Um magnífico livro. Depois direi mais. Agora quero continuar a lê-lo. Nasci em Angola. Ela escreve: «A nossa Angola acabou». Eu leio «A minha Angola nunca existiu». Sou um apátrida. E continua: «insistimos em pormenores insignificantes porque já começámos a esquecer-nos». Ambos.

Uma Frescura de Asas

Ali estava ele,entre outros, quase escondido. Já o tinha e até lido e comentado mesmo, aqui. Na edição da Europress, mal colado, as folhas a soltarem-se da lombada. Mas este tinha de o trazer. Para o devolver à intimidade do segredo. António Quadros escreveu "Uma Frescura de Asas". E aquele exemplar dedicou-o «ao Sam Levy, com todo o apreço e a velha amizade». Foi em Abril de 1991. 
Não sei que factos da vida ou da morte atiram estas dedicatórias para a rua e seus mercados. Recolhi-o hoje e guardo-o, escondendo-o para que não fique prova. Vim contá-lo porque é verdade.