sábado, 20 de julho de 2019

Sarah Afonso: eu sou o que sou!

Ver esta manhã a exposição da arte popular minhota de Sarah Afonso, que agora se encontra na Fundação Calouste Gulbenkian, foi desfiar um álbum de recordações. 
Lembrei-me ao chegar a casa do livro de conversas suas com a neta, Maria José Almada Negreiros, editado em 1982 com prefácio de António Alçada Baptista. 
Procurava explicação para um facto que se me tornou evidente ante a cronologia do exposto que, pouco extensa, vai aos primórdios da juventude, nascida que foi em 1899. 
Casada com José de Almada Negreiros em 1934, terminaria a sua carreira de pintora em 1939. Em aberto ficou-me o porquê dessa pressentida e enigmática negação do que fora uma vida, tão breve interrompida.
Achei-a no livro. Primeiro a razão da pintura: «Eu entrei na pintura por emoção», diz, a abrir a conversa que arranca precisamente com essa origem minhota e com a arte popular * marcante ante a vivência vianense em que se situou o seu aprendizado de «desenho linear e trabalho de mãos», estes os depois chamados «lavores femininos».
Depois a razão da desistência [Conversas, página 112 da edição da Arcádia **] «[...] eu não sei explicar o que é a pintura. Ainda hoje uma senhora que é muito simpática, quis conhecer-me, veio cá a casa, olhou para os meus quadros e disse " a sua pintura é igual à do Almada". Disse isto para ser simpática mas isto fere-me. Ele é o que é. Eu sou o que sou. Mas que me venham dizer que a minha pintura é igual à dele, isso ofende-me, sobretudo porque ele tem um grande nome. E isso foi uma das coisas que me fez parar. Havia sempre alguém a dizer "a sua pintura é igual à do Almada". E não é nada igual».
A emoção que ditara o começo condicionara afinal o fim. Daí em diante Sarah Afonso canalizaria a criatividade para o desenho, porventura com «[...] aquele prazer da obscuridade que muitas vezes é a marca das grandes amorosas», como se diz de Maria Adelaide no folhetim de Agustina Bessa-Luís O Mistério da Légua da Póvoa.
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* Popular sem aspas, ao contrário do catálogo que, como se envergonhasse do termo, a curadora Ana Afonso o grafa em itálico e entra em remissão para obra académica a situá-lo, relativizando-o, afinal
* página 91 na segunda edição, publicada em 1993 pela D. Quixote, mais cuidada na resolução das imagens, se bem que também todas a preto e branco.