domingo, 19 de dezembro de 2010

Um ouriço a dilatar-se

O livro é um diário. Reportado ao ano de 2007. Parei no dia 25 de Março. É dia em que faço anos. Não me lembro onde estava nesse dia ou com quem. Nem se festejei ou festejaram o dia dos meus anos. Fiz contas para ter a certeza de quantos anos eram e estou incerto quanto a ter-me enganado na subtracção. Compreendo-a, por isso, hoje, a essa escrita, implosão de um ser de que escorrem, viscosos como uma dor nojenta, as vísceras pelas paredes do presentes, literárias mas tripas sempre e seus conteúdos sulfídricos, dejectos de memória como uma compota escorrente mais o coração a latejar e um mundo feio quando cerebral vazio de pensamento, e uma ânsia furiosa de beleza e formas boleadas, femininas e reconfortantes quando desinquietam, e sempre o eternizável momento de um fundo olhar vindo do desejo, «aulas tão compridas, dias tão compridos, noites eternas» e a madrugada da desolação solitária.
Leio-o agora em 2010, e 2010 acaba breve, e ele escreveu tudo isso ainda este ano, e editaram-no, rápidos porque há pouco tempo, o tempo foge e ele luta contra o desaparecimento seu e nosso e lêem-no menos, eu próprio leio-o agora por piedade para com os meus remorsos de o ter desprezado, mas não há outra escrita possível porque não há outra vida, fragmentária, «a pele das mulheres tão suave e o consentimento, a avidez».
É domingo. Vou levar tempo a ler-te António Lobo Antunes e a este teu livro e escreverás outro, sempre o último até um dia em que acertarás para fortuna de todos os críticos e o memorialistas e os que purgam os maus instintos e as azias do desprezo para com todos os outros comemorando, olha outra dia foi o Carlos Pinto Coelho e o Herman José a dizer que teve uma morte digna porque foi de repente e ninguém riu.

A Engrenagem

Consegui lê-lo e sobretudo vê-lo. Fiquei assim a saber da vida militante, na qual a Literatura era uma exigência da pessoa que o cidadão dispensaria em nome de valores mais exigentes. Dois momentos desse magnífico álbum sobre Soeiro Pereira Gomes o demonstram. Cito-os de cor, porque arrumei o livro na estante e estou preguiçoso demais para o ir buscar e o que melhor fica do que se leu é o que recordamos sem ser necessário relê-lo. Primeiro, uma frase de Tolstoi: se puderes evitar escrever um livro não o escrevas. Segundo um apontamento seu: se por outras razões mais urgentes tivesse que largar a Literatura, fá-lo-ia, oxalá!
Na primeira, a gravidade da escrita, na segunda a sua complementaridade. A escrita é demaisado séria e que a dispensem aqueles para quem ela não é uma exigência fatal do ser. A escrita não é a totalidade da vida e que vivam os que julgam viver através do que se lê.
No mais, Soeiro Pereira Gomes é o que se imagina no mais nítido neo-realismo: a luta pelos valores do seu partido e pelas causas do seu povo, a pertinácia trabalhadora, o colectivo, a denúncia da opressão e da miséria, a tensão entre o panfletário e o artístico. Ligado directamente a Àlvaro Cunhal, viu livros seus merecerem a honra de capas com desenhos deste.
Não sei se é totalmente idêntico a Alves Redol. Vou relê-lo para saber. Morreu, no ano em que eu nasci, depois de num desastre fatal, ter caído de uma bicicleta.
Nos arquétipos comunistas o símbolo do homem da bicicleta, camarada nocturno, clandestino, pedalando sacrifício pela noite do medo é uma figuração essencial. Pressenti ontem que seria ele essa figura evanescente.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A ironia da minha hora

Li esta manhã, em que, enevoado como a rua, fui a grua de mim mesmo para me soerguer e enfrentar as obrigações minhas e os deveres para com os outros, sem tempo para ler ou para pensar salvo no óbvio, que hoje era um qualquer aniversário do Teixeira de Pascoaes. Agora confirmei que era o da morte, que aconteceu a 14 de Dezembro de 1952. Como não dá data certa vai haver escasso fogo de artifício necrófilo. Comemorar uma morte é, aliás, tão ridículo como celebrá-la com champanhe, os vivos contentes pelo passamento daquele.
Advogado de profissão, com banca exígua na Rua das Taipas, no Porto em 1906, dele se disse, como se numa síntese que resumisse assim sua vida, «em conclusão, o poeta venceu o advogado, adoecendo, ou tirando forças da fraqueza».
E assim foi. Fui reunindo dele a obra, assomei aos portões da sua casa em Amarante quando por ali procurava para um livro inacabado o Amadeu Sousa-Cardozo. Está comigo como presença e possibilidade.
Cedo se lhe foi vincando no rosto a caveira simbólica que anuncia aos vivos que a Morte é dona já daquele corpo. A alma, essa, brilhava-lhe, como uma luz reflexa, e por isso escreveu que «a vida é uma queda energia brutal, sorriso que ficou da gargalhada, relefexo de um incêndio longínquo» e por isso também no cemitério de Gatão, irmanado com a Natureza que é Mãe, ele jaz, ou o que dele resta, sob o epitáfio: «apagado de tanta luz que deu, frio que tanto calor que derramou».
Falta a memória. Nesta tarde que finda e em que a noite já começou, olho, juntos na estante, os livros que nos deu. Preparo-me para o dia em que ao lê-los sentir que o acaso me levou a isso, anunciando-se, como num sorriso, a ironia da minha hora.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Vagão J

Consegui, enfim, acabá-lo hoje. Arrastei a leitura, porque vou intrometendo outros. Um deles foi a "Promessa", que foi também desta safra neo-realista e mantido inédito. Falo do "Vagão J".
Não se resume um livro numa crítica, nem eu sou crítico do que seja, apenas um leitor que gostaria que houvesse mais leitores para os livros que leio e gosto.
Depois de o ter escrito, Vergílio Ferreira abandonaria os caminhos dessa arte social e politicamente comprometida que é aqui o sopro criador destas páginas gritadas, na qual não havia outra estética que a da militância pelos «humilhados e ofendidos», outro tema que não fosse o da «luta pelo pão e pela paz».
Claro que se daria mal com todos eles e terminaria bilioso, com a tábua nos joelhos onde, forçado da escrita magnífica que o seu admirável ser gerava, se esgotava em palavras findas as aulas no Liceu Camões, a chamar-lhes «neo-realeiros» e outras imprecações que tais.
Mas não só com os intelectuais de serviço se incompatibilizaria, mas com aqueles que deles se julgavam serventuários e combatentes, porque - como confessa no texto de apresentação que escreveu em 1971 para esta obra, que começaria em Faro em Maio de 1943 e terminaria em Melo no ano seguinte - «aproximando-me eu de um proletário com boas intenções de simpatia e solidariedade, logo ele me rosnou, desconfiado da confraternização, ameaçando-me de navalha, para cortar rente o diálogo».
Uma coisa é certa: "Vagão J" mostra em que medida quem ali está, a gerar aquela escrita, vai à dimensão mais densa do homem aque aquela que ele o forma como animal social, o modela como cidadão, o confina como personagem histórica na luta de classes.
É a história dos Borralhos e do seu termo e do crime que tem de ser cometido antes de eles o cometerem, um crime cujo motivo é o ódio a todos exigir o sangue de um qualquer.
História de inquietação feita vagabundagem, de rancor feito tristeza, de pobreza tornada em raiva, há por ali também o professor, inevitável como surgiria na "Aparição", menos a tragédia existencial, «que se enganou na classe onde foi bater, por haver um pouco de consciência onde se não via que fosse precisa». E o António que se torna seminarista «para eu lhe contar um pouco o que é já da minha história» e eis a "Manhã Submersa" anunciada.
É um livro notável:  «o espírito escapa-se como enguia ao suborno da matéria e daqui nascem problemas complexos». Como toda a sua obra. Assim eu viva para a ler toda, tão devagar como ela merece e exige.