sábado, 20 de agosto de 2011

Tenho-a, praticamente toda, a obra do Albert Camus, a maior parte lida, muitos livros candidatos a serem lidos com maior finura de atenção e pensamento, porque foi através dele que me formei, o existencialismo e não o marxismo foram a minha escola e o meu lar, onde se gerou a minha razão sentimental, feita de repúdio angustiado do racionalismo e da negação do materialismo e seus absurdos.
Encontrei-o, ontem, na feira do livro permanente que existe na Gare do Oriente. Ali estava a saldos. Trouxe-o comigo, um livro sobre ele. Rejeitara-o quando saiu em 2009, talvez pelo preço, porque me divido e esgoto entre tanta literatura que tenho que repudiar o que afinal desejaria, talvez por ter sido escrito pelo Jean Daniel e eu transporto nas entranhas dos meus mal-estares uma vaga náusea pelo Nouvel Observateur nascido pela visceralidade irrazoável de ter visto a vulgaridade emproada em que se tornaram hoje muitos dos que eram então os seus "incontornáveis" leitores, enfim, aquelas vadias ideias e lunares pressentimentos que fazem contraditoriamente um modo de ser de um humano que se não reduza a indivíduo e lute contra a vida para ser pessoa.
Li-o quase todo pois a letra é de corpo largo, amiga dos meus olhos e do editor, que assim transformou em grande um livro pequeno.
Não é o Camus que eu esperava nem creio que a amizade que ligou o autor ao biografado tenha permitido àquele entrar no âmago mais íntimo dele. É sobretudo um livro nascido no território do remorso. Além disso, o livro tem muito do palacianismo político francês e sua corte rococó. 
O essencial ali é o Camus jornalista, empenhado a fundo no jornal Combat e já desenraizado na revista L'Express, menos o escritor, muito menos ainda o pensador. É sobretudo a questão argelina e o grave problema moral da violência e do terrorismo. Só pela questão da moral da imprensa e do utilitarismo a que quanta desta se presta vale a pena ler o que li. 
Tão diferente de Sartre, que desprezava a imprensa - e só por um arroubo já meio senil se armou para a fotografia em ardina por um instante do maoista La Cause du Peuple - é na trincheira contra a imprensa vil em que «o gozo, a pilhéria e o escândalo formam o mundo» do que se imprime - e quantos fizeram disso carreira e lucro! - instrumento de «uma sociedade que permite ser distraída por uma imprensa desonrada e por um milhar de cómicos cínicos, aureolados com o nome de artistas», uma sociedade que «caminha para a servidão, apesar dos protestos daqueles que contribuem para a sua degradação», que encontramos este ímpar filho da tragédia da existência.
Contra a imprensa dos «famosos periódicos erótico-comerciais» - e os que hoje armando-se em respeitáveis vivem dos anúncios das putas, pois que são as que ainda pagam a dinheiro - mais a «imprensa dita "cor de rosa" - a vender ilusões em que o music-hall convive com o futebol, o brazão arruinado com o burguês hipotecado - o jornalismo acampado na «subserviência ao poder do dinheiro, a obsessão de agradar a qualquer preço, a mutilação da verdade sob um pretexto comercial ou ideológico, a lisonja dos piores instintos, o "furo" sensacionalista, a vulgaridade tipográfica» ele travaria, ainda hoje, por maior razão, o seu combate.
Ainda o comprei, em Lisboa, numa loja de indiferenciados ali aos Restauradores, o Combat, o jornal que ostentava, orgulhoso a seguir ao título o mote «de la révolte à la révolution». 
Um homem revoltado ecoava-me então da pele aos ossos e seguiu-me até hoje. Como o primeiro homem, fonte de toda a Humanidade. Depois, foi o mito de Sísifo a amarrar-me ao mundo adulto das obrigações e a ânsia de que haja um Sísifo feliz. Ele encontrou-me a morte num pavoroso desastre automóvel, saindo da estrada onde afinal sempre se sentira estrangeiro.


domingo, 7 de agosto de 2011

O pornógrafo

Há umas semanas atrás irritei-me comigo - que é uma forma de os outros acharem que me irritei com eles - por ter concluído que uma estopada que o Henry Miller escreveu chamada "Os Telhados de Paris", a qual o "Expresso" vende a um euro com o jornal, sendo rasquice ordinária e vulgar nas suas sucessivas narrativas abruptas de fornicação e deboche, reiteradas e sem imaginação estilística, era uma fraude. E um insulto às mulheres tratadas ali abaixo de gente, pior que animais, como se pior que objectos fossem. Mas admito que de facto o livro surgiu para ser uma «novela pornográfica» e nisso não engana ninguém. E é uma «novela pornográfica», excepto ser uma novela. É que pela milésima vez o leitor já sabe onde é que um dos fulanos que se bamboleia pela história vai meter o membro sexual assim como já nem espanta que a miséria da escrita abra com uma criancinha de treze anos em pleno sexo oral.
Claro que o "Expresso" imagina que sendo Verão os leitores precisam de ser aquecidos por aquela forma e claro o nome do autor promete uma sessão de sexo em casa respeitável. O que não muda a natureza do mesmo.
Para quem não tiver medo de dizer que não é a provocação, sexual que seja, que define a boa Literatura, nem a existência de sexo que a torna má, fica tudo dito o que há para dizer.
Vejo agora aqui a menção a uma obra que em breve estará nas bancas. São, segundo leio na recensão crítica, pequenas histórias, numa delas os compositores russos Borodin and Rimsky-Korsakov a usarem os seus sexos para fazer massagem aos pés...nem cheguei a perceber de quem!
Imagina-se. Mais: o autor é o criador de um livro que a menina Levinsky ofereceu ao Presidente Bill Clinton. Um livro sobre sexo telefónico explica o crítico, que cita, em ilustração de um dos seus momentos - porventura o mais vocal - este trecho em que a heroína geme ao bocal: «Oh! Nnnnnnnn! Nnn! Nnn! Nnn! Nnn! Nnn! Nnn!». Que delirante imaginação!
Falta só revelar o título da novel magnificência: chamar-se-à "House of Holes", literalmente "Casa dos Buracos". Compreende-se, numa literatura em que não há lugar para subentendidos, que o título seja este. Tal como nos filmes de cow-boys, antes de ler, o leitor já sabe o que há para saber.
Vista a aparência do autor, e por isso eis ao cimo foto do dito, ele poderia ser místico e eremita. Sucede que em vez de escrever sobre o êxtase optou por escrever sobre o orgasmo. Com redobrada vantagem.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A cegueira da razão

Há na escrita de Jorge Luís Borges uma tal figuração do real livresco que o leitor hesita em saber se é existente o que passa por verdadeiro na sua escrita. São os livros que podem não ter sido escritos, os povos puramente imaginados, as filosofias imputadas a nomes que nunca filosofaram sequer em torno do próprio nome, gramáticas ficcionais e línguas sem vogais que nenhuma língua dobrou. Entre o divertimento e a trama, o magnífico argentino fez método construindo enredos que sendo literários são filosóficos nunca sendo filosofia feita literatura.
Cego a partir da idade em que as ideias frutificariam maduras, passou a pensar em profundidade por ter perdido a capacidade de observar em extensão. Radica aí a sua concepção topológica do tempo, a volumetria do ser como sua essência natural à ausência de dimensão própria que não seja a dos limites ao infinito para que tende em movimento perpétuo.
Lembro-me disto ao mesmo tempo que a preguiça me impede de ir apenas à sala ao lado buscar o pequeno volume, compêndio de artigos, onde possa confirmar a justeza da ideia, valorizar o rigor da citação. Talvez esteja nisso borgeano já, rendido à verdade da aproximação ao sentimento mais do que vergado à força injuntiva da razão.
Na tabela das equivalências universais o incompreensível dói tanto como o entendido. Dói sobretudo por mais tempo porque há a extensa caminhada em busca da compreensão.