sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

O Leopardo

 


«Tenho setenta e três anos, por alto terei verdadeiramente vivido, um total de dois...três anos no máximo», eis a nostálgica constatação de Don Fabrício, ele que «havia dezenas de anos que ele sentia o fluído vital, a faculdade de existir, a vida, em suma, talvez até a vontade de viver, desprendendo-se de si, vagarosa mas continuamente, como os pequenos grão de areia que escorrega, um a um, sem pressa e sem detença, pelo estreito orifício da ampulheta». Era Julho de 1883.

Cito este excerto de "O Leopardo" de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Um clássico, dos que eu deveria ter lido há imensos anos mas não li, cuja leitura só consegui completar entre breves intervalos, os que foi possível, cuja narrativa não segui, pois nunca sigo, mas cuja paisagem humana, a geografia sentimental, ficou como uma viagem que fizesse pela sua Sicília e já a fiz há tantos anos de que apenas recordo o que leitura retorna agora como reminiscência, terra de «um sol violento e impudico, um sol narcotizante que anulava as vontades e mantinha todas as coisas numa imobilidade servil».

"Il Gattopardo" é, para além de uma estupenda obra romanesca, um momento em que se surpreende a  História da unificação italiana, a ascensão de Garibaldi, o triunfo de uma nova ordem por sobre a decadência da velha classe social, cenário de contrastes, de interesses mascarados de ideais, em que «o ciúme pessoal, o ressentimento do beato contra o primo sem preconceitos, do pateta contra o rapaz inteligente, haviam-se transformado em argumentos políticos», em que «ele havia chegado à conclusão que a aristocracia era constituída por um conjunto de homens-carneiros, cuja existência se justificava somente pela lã que ofereciam às tesouras da tosquia e pelo nome»

Por ali perdida - na página 35 de velha edição portuguesa, que foi a que me serviu, editada em 1961 pela Bertrand, a frase «se queremos que tudo fique como está é preciso que tudo mude», tantas vezes adulterada e imputada a outros. 

É sobretudo um livro carregado de observações irónicas, elegantes na forma, mesmo quando cáusticas na substâncias, de uma categoria senhorial que é de um tempo já morto. A cuidadosa tradução de Rui Cabeçadas mantém-nas incólumes.

Pululam pelas suas páginas personagens risíveis como o «homenzinho seco que escondia a alma de liberal ambicioso e rapace por detrás de uns óculos tranquilizadores e de gravatas imaculadas», ou outro «que praticava as próprias ladroeiras convencido de exercer um direito», o ainda o sacerdote, Padre Pirrone que «se sentava num canto, assumindo o ar marmoreamente abstracto dos sacerdotes que não querem pesar nas decisões alheias».

Talvez para esta viragem do ano, esta leitura, terminada já há semanas, adiada a vinda aqui anunciá-la, seja recordação simbólica. Sem obra prévia publicada, nem posterior, o autor, Príncipe de Lampedusa, iniciou a escrita deste seu livro aos 60 anos.

sábado, 18 de dezembro de 2021

De maneira que é assim

 


Mário de Carvalho é advogado e escritor, diria escritor apesar de ser advogado. Não que na profissão forense não se recrute uma plêiade significativa dos que se dedicaram à escrita e à edição. Entre os primeiros lembro, por exemplo, Rodrigues Miguéis, dos segundos recordo, exemplo também apenas, António Alçada Baptista. Só que as condições em que hoje se advoga por causa delas tudo converge para que quase não sobre tempo, nem estado de alma para que a escrita tenha oportunidade de surgir.

Confesso que li muito pouco de Mário de Carvalho, mas há sempre tempo de emendar a mão. Não digo que tenha começado por este livro, sucede é que terei de reler outros seus para me recordar da leitura pretérita pois, como em mim, já é natureza, há muita leitura que suponho nova mas, ante os sublinhados e por vezes as notas marginais, verifico que mais do que ter já lido, tinha pensado quanto lera e ruminante.

Li, pois, estas suas memórias dispersas, o livro aqui a meu lado. 

Há nelas muito de política, de quem foi militante comunista e em cujo ser essa vivência ficou indelével qual sacramento indissolúvel. O tempo da clandestinidade está ali retratado, temperado com a ironia crítica mas nunca como repúdio. A militância nasce-lhe no sangue como se pressente na apontamento "O dia em que levaram o meu pai", «a altura das perguntas de fundo, que eu nunca havia feito», segue-o com os cuidados conspirativos, os «pontos de apoio», a que se chegava com a consigna «põe os olhos no chão», as "tarefas" que, decididas pelo "colectivo" chegavam através do "funcionário", cujo nome se ocultava pela da sua função.

Mas o livro não se fica por aí. Proliferam apontamentos da Lisboa aldeã, essa aldeia feita de vizinhanças, a Penha de França, a Senhora da Glória, a Rua da Graça, o Forno de Tijolo, Sapadores, o Cinema Royal, os domingos, porque «domingo sem piquenique não era domingo não era nada». 

Leio em muito do que ele escreveu a memória dos mesmos lugares que foram meus, sem, porém, a substância do que para ele significaram e tornam hoje estes "relances" escritos "ao correr da pena", linguagem comum, familiaridade, como se companheirismo sem camaradagem.

«Oxalá nos encontremos, caro leitor», escreve no seu breve e tímido prefácio. Aqui estou, meu caro, com este breve apontamento. Ainda bem que o Ernesto Rodrigues levou as suas cópias "gatafunhadas" ao João de Melo e assim se iniciou com os "Contos da Sétima Esfera". 

Prometo ler mais, começando assim pelo aquele seu princípio.