quarta-feira, 24 de julho de 2013

A doçura do viver


Doçura, Arte, os prazeres da vida e o livro oculto de D. Maria dos Prazeres, o sentido do pecado a amargar a existência, tudo junto, entre o ensaio, a ficção, a técnica. É um livro apetecivel à vista, porque construído sobre as pinturas de Josefa de Óbidos. Coordenado por Francisco Sobral do Rosário, médico endocrinologista, especialista em diabetes e contista como escritor. Juntou um psicólogo de Educação, professor nos EUA, Bob Anderson, uma especialista em História de Arte, professora na Universidade Nova de Lisboa, Raquel Henriques da Silva, um professor de Literatura, crítico e escritor, Miguel Real, e um engenheiro químico e, imagine-se, presidente da Academia Portuguesa de Gastronomia.
Tudo em torno da alimentação racional, do ter fome na cabeça que não com no estômago, na contemplação das naturezas mortas por seres viventes.
Lê-se e revive-se, gustativamente.

domingo, 21 de julho de 2013

O fosso da sem razão


Livro tremendo, o fim da narrativa anunciado desde logo no início: «Bastará dizer que sou Juan Pablo Castel o pintor que matou Maria Iribarne». E disse, mas um imenso fosso de sem razão abre-se ante o leitor, perplexo e agoniado de dúvida.
É o livro explicação do porquê odioso dessa morte, relato de que em cada momento a ideia da mesma se foi avolumando, tumultuosa, simultaneamente com a descrição, gotejante, de o sentimento do amor a poderia ter evitado? Mais do que isso. 
O Túnel é o diário de todos os cambiantes sentimentais do amor, labiríntico, contraditório, absurdo, vivido com «ódio, desprezo e compaixão», como se dois corredores ou dois túneis os separassem sem jamais convergir, e cada átomo de acto fosse sujeito a um «lúcido mas fantasmagórico exame», com conclusões sempre hipotéticas mas indesmentidas mesmo quando não verdadeiras.
História de uma «lúcida ferocidade» é a razão de um louco contada pelo próprio, vida de seres de fealdade e insignificância, mundo de mentiras e de insensatez.
Sofrido em Buenos Aires, impossível não ver referências próximas como Borges e a sua biblioteca, Borges e a sua cegueira, Borges e, afinal, a consciência moral final da razão conformada com todos os excessos do sentimento, a eles renunciado.
Livro estranho, profundamente real na minúcia do quotidiano que lhe dá desenvoltura, críptico quanto àquilo a que afinal se refere e ao que vem.

sábado, 6 de julho de 2013

Ernesto Sabato, o caminho improvável


Escrevi uma vez e aconselharam-me a não escrever que tenho lacunas culturais tremendas. E que há autores que se dizem «clássicos» mas nunca li, e que me passaram ao lado tantos dos que são tidos por «incontornáveis», expressão que esteve tão em voga. 
Li agora Ernesto Sabato para ir descobrir que tenho na minha estante, entre outros, alguns dos seus livros - e escreveu relativamente poucos- nisso incluindo O Túnel e O Escritor e os Seus Fantasmas. O primeiro a única novela que quis publicar e que, para a ter visto editada, teve de sofrer amargas humilhações de a ver sistematicamente recusada por todas as editoras argentinas e que sairia pela Gallimard francesa graças à intervenção de Albert Camus, tão funda era a mútua compreensão das suas almas. 
Livro triste este que li, biográfico, mas livro de esperança. Livro de quem viveu uma vida e aos oitenta e seis anos reflecte sobre o que foi o caminho errático, incerto, tumultuoso, improvável, «que o destino conduz-nos sempre ao que tínhamos de ser» e «a vida faz-se em rascunho e não nos é dado corrigir as suas páginas».
Livro de alguém a quem doeram as dores alheias e por isso se envolveu na acção política, acreditando e descrendo mas nunca perdendo a esperança.
Livro de quem se fez a negar uma carreira fulgurante no campo das ciências em nome do apelo obscuro daquilo que lhe permitiu, afinal, «expressar horríveis e contraditórias manifestações da [sua] alma, porque nesse obscuro território ambíguo, mas sempre verdadeiro, lutam como inimigos mortais»
Livro de quem viveu em tumulto interior permanente, em fidelidade à sua condição humana.
Antes del Fin esteve para se chamar Memórias de um Desmemoriado, porque são remanescentes do que ficou em que viveu para não lembrar, bem sabendo que «os anos, as desditas, as desilusões, longe de facilitarem o esquecimento, tristemente, reforçam-no». 
São os comoventes os livros que me ficam. Faria minha a sua frase «os livros que li, as teorias que frequentei, deveram-se mais aos meus próprios tropeções com a realidade», tal como ele «nesta complexa, contraditória e inexplicável viagem até à morte que é a vida de qualquer um».
Ernesto Sabato foi uma extraordinária promissora figura no campo da Física, tendo sido bolseiro do Laboratório Curie e do lendário MIT norte-americano. Mas era apenas refúgio o que procurava nas matemáticas materializadas e ante a «prepotência racionalista» e refúgio o que, a partir da década de quarenta, procurou na arte e na literatura e, em grande parte, na ficção, desiludido com «a imbecilidade dos que acreditam que o progresso é o avanço da civilização», quando «chegámos à ignorância através da razão».
Sem que o soubesse «antigas forças, em algum obscuro recinto, preparavam a alquimia que me afastaria para sempre do incontaminado reino da ciência. Enquanto que os crentes, na solenidade dos templos, murmuravam as suas orações, ratazanas famintas devoravam ansiosamente a catedral dos teoremas». 
Este seu livro é uma ode magnífica ao humanismo, o desprezo e a denúncia do «mundo tecnocrático e cientifista», aquele em que «a angústia metafísica e religiosa foi substituída pela eficácia, pela precisão e o saber técnico», tudo o que gerou a paradoxal «desumanização do homem», à mercê das «forças dinâmicas e amorais do dinheiro e da razão», em que «o capitalismo moderno e a ciência positiva são a mesma cara de uma mesma realidade despojada de atributos concretos, de uma abstracta fantasmagoria». 
Manifesto desolado contra o contemporâneo monstro de três cabeças, o racionalismo, o materialismo e o individualismo, expressão de um soldado pelos «excluídos do grande banquete dos economicistas», os que se tornaram numa simples «estatística sociológicas», é a afirmação derradeira daqueles que cantam na hora do suplício! 
Manifesto de quem sabe, conhecendo-as, as sinistras criaturas em que nos estamos tornando, as mesma que Goya surpreendeu, pintando-as, a vida como a volúpia de um tango «esse pensamento triste que se dança».