quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

A Lua nos Céus



Redonda, cheia, prometedora de um ano novo repleto de coisas boas, a lua sobe, impondo-se ao céu que a recebe. Escondiam-na nuvens de chuva, uma chuva purificadora do ar, fecundadora da terra.
Na terra os campos estão gelados. Na cidade as pessoas apressam-se porque hoje fecha tudo mais cedo e há em muitas casas passas e champanhe e meia-noite. E há sair de casa para o fogo de artifício da esperança.
Talvez haja um livro onde isto seja descrito com melhor propriedade e mais nítido sentimento. Um livro que eu pudesse ler, sobre uma lua que povoasse os céus, anunciando um Bom Ano.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Salvo pelo Governo!



Emenda «perevenidos» para «prevenidos» avisou ela, amiga. E eu mil vezes calino, dez mil vezes trapalhão, cem mil vezes disléxico, um milhão de vezes distraído, dez milhões de vezes apressado, lá fui emendar. Antes que os sonhados leitores, os apetecidos leitores que quase não há, dessem por ela. Ela a asneira, troca de dedos vinda de um cérebro já virado do avesso.
A coisa em si, como diria o Kant, a coisa em si, digo eu, está a ganhar foros de persistência, como aquelas dores físicas que resistem à massagem ou aquelas dores da alma que não há ombro amigo que faça dissipar.
Ora eu esta manhã dei conta de que havia um Acordo Ortográfico que ia entrar em vigor. Foi ao ler o jornal, pela hora do pequeno-almoço. E há jornais, como o Público que se recusam militantemente a aplicar. E há escritores como o Gonçalo M. Tavares que vão escrever como sempe escreveram e os revisores se emendaram, olha, emendaram.
Pois para mim eis a salvação. Passo a escrever aflicção com dois cc's, como sempre adorei fazer para dizer que estou mesmo aflito, perú com acento no ú para dar mais enfâse ao Natal, que vejo celebrar com a matança do glu-glu. Assim ninguém dirá nada. Quando hesitar aos sessenta anos sobre devo escrever vêm ou vêem, ou havê-lo-à em alternativa a havê-lo-á, tanto faz.
É que o Acordo é optativo. Cada um faz com ele que lhe dá na real gana. É uma lei para quem quer.
É como os Governos do País. Foi da cabeça deles que veio esta. Deles e dos políticos da comunidade dos países que falam português.
E eu que me estava a tornar um libertário em política e um anarca em ortografia aqui estou, fiel cidadão e sofrível contribuinte, mau escrevinhador, a deixar o meu obrigado a todos os que na política me salvaram: muinto oubrigado a toudos purque eu axo quisto çadebe escrever cuma çalê. E o resto são lérias...

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

O Tombo



Envolto no labirinto da Torre do Tombo a trabalhar num outro livro, desta vez com o aguilhão do prazo já prorrogado. Muitos dos blogs dedicados a livros estão a dormitar. Muita gente aproveitou para tirar férias. Férias da blogoesfera, imagina-se. Pois faço o mesmo. Já ontem não escrevi. Volto amanhã com o livro mais adiantado. Arrancado aos arquivos, é uma história de uma memória ambígua. Presos e mais presos, os prevenidos e os ingénuos úteis. Gente que acreditava e gente inacreditável. Depois digo o que é. Para já estou na fase ainda que nem eu sei.
O dia foi duro, a roer papel. Como um rato. No labirinto.

domingo, 27 de dezembro de 2009

O Livro da Casa, de Fernando Cabrita



Li-o e de repente surgiu-me o nome: Ezra Pound. Hesitei, mas a musicalidade era essa, familiar, guerreira mesmo quando e pacífica, idêntica a virulência torrencial dos versos, o grito e o clamor em estrofes inesperadas. Encontrei-o então na página 82, o «Poema Triste para Ezra Pound», o poeta maior enjaulado como ficou na memória punitiva, conspurcado pela sua adesão fascista, pecado político a obnubilar o génio poético, louco animal rude «ó poeta velho, ó lobo triste/soldade de penas vãs e vagas». Reconheci-os ambos o autor e o seu estro.
Falo do livro de poemas de Fernando Cabrita. Um Canto em múltiplos cantares.
Sabia-o Advogado, olhanense, escritor, mas não o sabia pintor e é dele o quadro que engradece a capa. Sabia-o poeta mas hoje senti-o poeta. A um artista nenhuma Arte é indiferente. Escreve-se na tela escorrem cores desta escrita.
São versos entre si diferentes mas em torno de uma mesma casa, do homem que «percebeu então que construíra a casa - e que a casa, entretanto, o construira a ele». São versos de uma «casa sem nome», versos marítimos de grumete velho devolvido ao mar inicial «velho camarada». Versos de contemplação amorosa, íntima, casta no impudor de ousar amar.
Há nesta poesia um anseio de lar, poemas de um exército derrotado pela longa viagem imperial, saudades de marinheiros porque «breve foi a casa que o temporal varreu», a febre ultramarina dos arqueiros «aguardando uma voz que os conduza a casa. Sempre a casa, a primeira, a segunda, a última casa.
São poemas a Sul, como «o voo livre das âncoras sepultadas nos abismos», poemas de uma janela para a intemporalidade de onde se pressente o mar «pelo cheiro a nevoeiro e as rochas molhadas», e «as recordações ténues de sons e livros e casas e beijos e coisas doces».
Não sou crítico literário porque escrevo e estou contente com o que escrevo e há sempre uma palavra amável que diga de quem se atreve a escrever, a quem arrisca nome, cara, expõe aos públicos as entranhas do sentimentos, o coração da sensibilidade. Sem inveja, sem rancor, sem maldade, com amizade.
Tinha tentado ler há dias o livro num dia de distração. Não se faz um tal crime a uma obra como esta. Hoje o dia deu-me uma nesga de oportunidade. A estupidez organizada de que faço vida impediu-me de ir ao lançamento.
De todos os versos permitam que escolha um, não o de Macias «Macias, o sem lar/mas cujo tecto era feito de todos os tectos/e o colchão era toda a planície/ e o alimento era todo o manjar e todos os manjares/e o amor era o amor que todo o mundo tivesse para dar», que é um momento de beleza dorida. Não o de Macias, apesar de me apetecer lê-lo em cada palavra e soletrar-lhe cada letra. Mas escolho a fala derradeira de «Enrique de Borgonha, no leito de morte em Astorga» quando «fala ao pequeno Afonso», seu filho: «Agora que os corcéis da morte cavalgam já/no meu encalço, e sinto os seus cascos/trotando em minha alma» ele, Enrique, «romeiro de San Jacob e lidador de guerras e conquistas» está em paz: «Nesta hora, amigos e inimigos têm já em mim//o mesmo rosto/e não caem neles ódios ou rancores, amizades ou estimas/tão só a rude melancolia de saber que já na morte me esperam/e fraternalmente nela nos reconheceremos/como no regaço de uma mãe antiga».
Chora-se ao ler isto. «Doma as perdas e os fracassos, e bem assim os triunfos/como um cavalo que te leve para onde tu queres ir/e não para onde ele queira./Sê dono sempre dos teus mesmos passos/e do teu próprio caminho».
Obrigado ao dia que me permitiu ler, obrigado a quem escreveu. Parabéns à Gente Singular, editores.

Expatriada como leitora


A arte não foi uma cura... [Maria Ondina Braga]

sábado, 26 de dezembro de 2009

O Almocreve das Petas


Há fantásticos modos de dizer: «desfile de putedos intelectuais pelas charnecas literárias ou artísticas». Vem no blog Almocreve das Petas. Veja-se aqui. É num texto a propósito do incêndio do prédio onde esteve anos a fio o Hot Club. E continua: «Entretanto o património arquitectónico jaz em ruína, as ancestrais associações culturais restam em incrédulo esquecimento, as artes esvaem-se sem honra nem afronta e espólios inteiros "fogem" para o estrangeiro. O absurdo silêncio sobre esses destroços públicos, que envergonha qualquer alma civilizada, imortaliza os “nossos” intelectuais e políticos». Mas há mais. Imperdível, que é uma forma muito em voga de se dizer.[na foto, o último almocreve em Portugal]

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Endividado como uma mula



Vergonha, mas não vi ainda a exposição, como não fui a tanto sítio onde deveria ter ido, nem fiz tanto do que deveria ter feito. E  está a chegar o dia um de Janeiro e de novo a tentação de jurar que com a passagem do calendário vai mudar tudo. Desta vez não juro. Embora mude muita coisa. Mas encontrei o catálogo da exposição e estive a lê-lo outro dia, acho que cheguei a meio, talvez não leia a bibliografia, mas prometo acabar de ler tudo. É sobre a obra do Luiz Pacheco. Com honras, enfim, de Biblioteca Nacional.
De todos os textos ali publicado sobre a sua pessoa e até agora lidos digo ter preferido o do Vítor Silva Tavares quando, sob o título Pacheco à la minuta inventa todo um vocabulário para nos trazer de volta a imagem impressiva desse portentoso náufrago das letras, atravessando a vida na jangada dos seus escritos próprios e editados, a família às costas: «pintocalçudo, saco de plástico nas unhas (cartola de prestidigitador: sal escalope, cuecas, manuscritos, Lénine ou Peter Cheney), botando parlapié a quem nunca viu mais pintado, travestiza-se em matas-moscas: salte mosca ao caminho, zás, berlaitada».
«Bobo iconoclasta», Luiz José Machado Gomes Guerreiro, Pacheco escreveu muito e editou mais. «Editor empenhado (dívidas por mor do empenho)», «cândido à força de se armar em perverso», «demoníaco palhaço neste circo merdonho», «libertino e pater familiae». A sua revolta libertária contagia, «o que está para trás empurra».
O livro tem dois lados. No oposto, a que se chega virando a obra ao contrário, de novo Vítor Silva Tavares, com nova prosa: Pacheco, editor-orquestra, um em tudo ao «descobrir talentos, escolher papéis e cartolinas, emendar textos, desenhar grafismos, rever provas, regatear orçamentos». E diria mais: vender à mão a cada possível leitor mesmo quando desinteressado ou desinteressante, fazer pacotes atados a fio barbante e levá-los aos correios, estafar uns vinte logo que recebidos do leitor, remeter o pagamento à tipografia «para o dia-de-são-nuca-à-tarde». Parafraseando, enfim: «endividado como uma mula».
«Hoje, o que pensarão de tais deambulações os que andam por aí fardados de editores, seja, os empregados de lixo das fábricas editoriais?». Pois não pensam nada. Talvez por isso mesmo.

P. S. Sou um trapalhão. Leio, releio, tento encontrar gralhas, erros, incongruências, asneiras. Avisaram-me «escreveste um de Dezembro em vez de um de Janeiro». Envergonhado, lá emendei. Doença sem cura.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

A noite de hoje e o dia de amanhã


A noite de hoje e o dia de manhã que sejam uma oportunidade no coração de cada um, uma forma de expiar a culpa através da renovação do amor. Uma fantasia de Natal.
Oportunidade para regressarem à infância os que tiveram infância, e recordarem-se sonhos com presépios e esperanças em pinheiros, a ilusão das luzes, o calor dos sentimentos bons, a chegada do Pai Natal: a família reunida, banalizando temas para evitar atritos, as coisas saborosas que povoam a mesa com muito açucar, a expectativa ansiosa pelos presentes na chaminé, o tempo de abundância, para quem teve abundância, quando chegavam travessas de cada estirpe com sonhos e filhós; e no dia seguinte e durante os dias que se seguiam no clã aproveitava-se o que sobejara, porque o tempo não estava para se estragar e se repartia-se o peru, o arroz doce e os caramelos pelos miúdos.
Era o tempo das crianças felizes, mesmo quando choramingavam, atroando os ares com risos, tropeçando nos corredores, gozando, entre nódoas negras e birras, o tempo em que lhes davam presentes; o tempo em que mesmo a tristeza cabisbaixa dos mais velhos não era uma acusação injusta, nem uma justiça dolorosa.
A noite de hoje e o dia de amanhã que sejam uma forma de se interromper a guerra que o homem trava consigo mesmo, fuzilando-se no interior do seu ser, matando nos corredores da alma a sensibilidade, embrutecendo-se nos armazéns vazios do eu com mais trabalho forçado e com ele a punição, sobrecarregando-se com deveres, essa marcha forçada pelos campos de extermínio do que nele ainda é humano.
A noite de hoje e o dia de amanhã não custam a passar. Hoje o trânsito ajuda, estando caótico, as lojas são boas porque estão atulhadas, chega-se ao jantar exausto e o serviço de mesa obriga a um rodopiar que concentra a atenção e distrai de todas as outras coisas.
Amanhã pode acordar-se tarde, almoçar pelas três, já uns terão de ir mais cedo por causa da viagem, outros, porque se dividem entre meias famílias e restos de família, estarão apressados conversando pouco olhando muito para o mostrador dos seus relógios.
Depois, há aqueles para quem nada disto é isso. No Natal as famílias divididas dividem-se ainda mais. E há os que já dividiram tudo e sobram eles, a fracção remanecente, aquém da qual já nem vida existe. Nem sei se me dirija a esses. Talvez a todos, àqueles também para quem hoje é dia de trabalhar.
Sei que poucos me seguem, um mínimo lê. Sei que no intrínseco valor do que escrevo falo para mim. Desejo-me um Bom Natal. A manhã está a começar, nem sei se fria. Chove.
O José Rodriges Miguéis tem um conto que é o Natal de um emigrante. Encontrei-o há uns anos num alfarrabista. Hoje não me apetece ler. O dia de hoje vai ser uma oportunidade. Não há Literatura triste, há é sim livros que renovam a tristeza em dias que deviam ser a aurora do riso.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O mundo dos não herbívoros


«Stieg Larsson’s serial killers and torture fanciers are capitalists in league with hideous fascist bikers and meth runners. Not just crime, it’s politics». Caramba! Como se abrem as portas da compreensão. Para mais veja aqui. E para quem quiser saber que «starting in the late 1970's, he combined his work as a graphic designer with holding lectures on right-wing extremism for the Scotland Yard» leia aqui.
A ideia é demonstrar que os suecos não são pacifistas herbívoros. Talvez nem totalmente vegatarianos. Para os que julgam, aliás, que o vegetarianismo gera o pacifismo, convém recordar que Adolph Hitler era vegetariano.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Um final feliz com Rosa Montero


Acabei de o ler, agora com o fim da madrugada e a chegada de um dia de chuva, o termómetro na rua a marcar treze graus quando há uns dias marcava cinco e parece que o mundo iria gelar. Li-o ao livro notável La Loca de la Casa de Rosa Montero. Começou entretanto a chover.
Um livro que poderia ser tautológico, uma escritora a escrever sobre a escrita. Mas que é um ensaio sobre a paixão. Um livro que lês quando escreves e devias ler quando lês.
Quando se lê um livro até ao fim e este lê-se na totalidade, arrastado o leitor pela apetitosa narrativa, detectam-se minúcias e recantos maravilhos. A história do enamoramento por M., como máximo exemplo, duas vezes contada e real mas talvez em nenhuma mais verdadeira do que a imaginada: na página 32 em diante e em retorno na página 218.
Li-a a essa história de enamoramento, com a aflição de quem quer para ela um final feliz. Há sempre um momento em que o leitor se tornou na personagem e deseja emendar quanto a vida escreveu. Rosa Montero, obrigado. Fiquei agora sem mais nada para ler.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Vai tu!



Houve tempos em que as pessoas escreviam os cartões de Natal a tempo e horas, tendo o cuidado carinhoso de anotar umas palavrinhas amáveis e esperançosas e manuscrever o próprio envelope.
Claro que havia os que tinham muitos cartões a enviar e pediam a alguém que fizesse o envelope e o texto por vezes já era pré-impresso.
Depois foi-se reduzindo tudo à chamada lei do menor esforço e há os que já só assinavam o cartão dito de Boas Festas com uma rubrica. Em alguns casos até o mísero autógrafo já vinha impresso.
Chegou enfim a net e com ela passou a ser possível ter um texto de chapa 5, igual para tudo quanto é gente e ala de meter umas palavrinhas de pretensa personalização no chamado cartão de BF.
Agora chegámos ao ponto do já nem isso: é um email para toda a gente, indistinto, indiferenciado, vai-se ao mailing list tecla-se enter e água vai. São clientes, são fornecedores, tudo ao molhe mais os amigos, que desde que se descobriu o bcc a malta recebedora nem topa quem é que é foi quem, que é mundo de quens, perdão abaixo de cães.
Um destes dias tenho de pensar a sério a legítima defesa da minha sensibilidade. E em vez de me dar ao esforço de, saído da manada dos destinatarios, ainda escolher uns quantos casos de amigos sem tempo e ir com umas palavras de resposta a pensar no próprio remetente, fantasiando a sua presença no meu coração, ainda que sem fitas, mesmo sem sinos, sem anjinhos ou velinhas, preparo uma «automatic reply» «to all» a dizer, vindo do fundo da alma: «Vai tu!»
Que tal? Gostam? Como diz a minha amiga engenheira que jura ter visto no cinema e eu acredito «cria corvos que te comerão os olhos».

Os livros e os leitores



Li aqui. Já tinha lido, talvez no livro de saudade que o Francisco Espadinha da Presença lhe dedicou, talvez no que o Bénard da Costa escreveu sobre a sua geração. «Também do António Alçada Baptista! Depois do encerramento da Moraes Editora uma senhora interpelou-o com alguma vivacidade dizendo-lhe: "Que pena! O senhor não devia deixar acabar assim a sua Editora! O seu trabalho foi muito importante. Devia fazer tudo para continuar. O senhor tinha obrigação de continuar, blá, blá..." E o António com aquela calma proverbial que o caracterizava perguntou à senhora: diga-me lá quantos livros nossos comprou? E ela disse: "nenhum"! "Pois é...também foi por isso que nós encerrámos"...».

domingo, 20 de dezembro de 2009

Um conto de Natal


E de repente um homem nota que é Natal. E um homem sente que há histórias para contar sobre o espírito de Natal. Porque há Natal e o espírito de Natal. E o dia de Natal. E a véspera de Natal.
Há um dia em que um homem pensa como vai sobreviver a esses dias sem entristecer demais.
Um homem pensa se com bacalhau consegue simular um jantar contente, com peru fantasiar um almoço alegre, se com filhós chega a adormecer, adocicando-se feliz, ao lado do Menino Jesus.
De repente um homem embebeda-se nocturnamente com canções que são nostalgias solitárias de infância e tem desejos de carinho no sapatinho e um presépio com musgo que seja uma alegoria de um lar.
Esta semana vai ser a véspera e o dia e o dia depois. São lágrimas do tempo que foi e da vida que podia ter sido.
Era uma vez um rapazinho que ia a 24 buscar sua mãe a um medíocre emprego para virem para casa consoar silêncio. Hoje estão ambos velhos, ambos separados.
Ao repicar dos sinos sucedia então o bater dos talheres no fundo do prato. No dia seguinte vinham para a rua, para ver se o dia acabava mais depressa. 26 salvava-os da agonia.
A história repete-se menos o emprego, menos os sinos, resta apenas o dia 26 e com ele a esperança de que haja um mundo onde se salvem.
Se houvesse um Deus querido e meigo e amigo de quem sofre não tinha nascido. Vivia apenas eternamente, sempre menino, sempre a sonhar a manhã de Natal. Dormia-se então ansiando a felicidade matinal do dia das surpresas. Naquele tempo eu gostaria de ter tido uma bicicleta. Nunca ma deram, com medo que eu caísse. Tinham razão.
Um dia haverá o Natal para os outros. Lentamente ela chega, uma vida já só feita de memória.


O preço do incomum


Foi assim. Eu precisava de comprar um carro. E achava que precisava de um automóvel confortável porque viajava muito e de uma viatura segura porque viajava para longe.
Mas não queria nenhuma das marcas convencionais que certas pessoas compram, nem os modelos que determinadas pessoas têm, porque não queria uma coisa que fosse parecida com o que certas e determinadas pessoas se parecem.
Foi aí que o vendedor me disse «um carro destes é daqueles que ninguém compra!».
Rendi-me ao argumento. Se me guiasse pelo senso comum perguntaria aos meus tostões: «mas se ninguém compra, porque é que hei-de ser eu a comprar?». Mas foi ao contrário em murmúrio com os meus botões: «ora se ninguém compra, cá está o carro que me apetece ter».
Feliz pela individualidade, contente pela diferença, alegre pela ousadia paguei ontem a factura da não normalidade, de não trivialidade, o preço do incomum. A Saab fechou, lia-se aqui. Goraram-se as negociações que lhe permitiram a sobrevivência.
Um destes dias tenho um problema para resolver. Não o de tentar ver-me livre do meu sonho, como os que atiram gatinhos a afogar para se desembaraçar da incómoda ninhada. Sim de me convencer que aos sessenta anos há coisas que acabam. De vez. Como a Saab.
«Você está a guiar um carro feito por uma empresa que fabrica aviões». Era o lema. Ontem entrei em perda, o altímetro silvando em descida furibunda, o hélice rosnando em bandeira, já sem airelons que me valessem. Em frente, a rude montanha do destino a esperar-me, tremenda, eu agachado no cockpit da minha carcaça humana, a manche da vida enclavinhada na mão, incapaz de voltarmos a ter o nariz virado para o céu. Mayday, mayday. Que Deus nos ajude.
Desculpem, eu sei que este blog é dedicado a livros. Este post também. No espaçoso porta-bagagens do meu Saab ainda estão caixotes com livros, as minhas maletas para a travessia, como aquele vagabundo que numa sacola transportava, imprevisível mercadoria, uma pesada tartaruga. Vem num livro do Miguel Rojas.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Sempre a abrir



«De que música gostas?», perguntou. «De toda!», respondi. Ter nascido em África meteu-me ritmo no corpo, viver na Europa ideias na cabeça. Viver no planeta Terra deu-me a noção da precariedade, vogar na Galáxia por onde passa a Via Láctea ungiu-me com a mística da insignificância.
Poeira no cosmos, a música mefística dos Zarragorth e outra mais, necrófila, sempre a abrir o reino das trevas, a noite da luz, eis a companhia para a travessia subterrânea para mais um ano. Abjuro te, spiritus nequissime, per Deum omnipotentem..

Boat people


Visitou-a na sua «casa-barco» pejada de recordações... [Maria Ondina Braga]

Escrever, de Vergílio Ferreira



Quando morreu, Vergílio Ferreira deixou um livro quase completo, um volume da sua série de textos antes publicados, que se editaram sob o título Espaço do Invisível, e um outro, ainda embrionário, em cinquenta e seis folhas soltas, para o que projectou várias alternativas de título.
A Bertrand editou-o em 2001, sob o cuidado de Hélder Godinho, com o nome Escrever.
Li-o a sublinhá-lo e a anotar à margem o tema, digamos assim, de cada uma dessas reflexões. Muitas têm a ver com a velhice, bastantes com a morte. O autor sabia que iria até ao fim.
São pensamentos daquele para quem «escrever é ter a companhia do outro de nós que escreve».
Um livro destes corre o risco de desaparecer. As pessoas interessam-se pouco pelo se pensa, menos ainda quando o pensamento é solto, vadio, não sistematizado, em suma, livre.
Vergílio Ferreira escreveu sobre o amor. Um amor triste, impossibilitado. «O amor é um impossível que a possibilitação destrói». É o impossível «que jamais terá fim».

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Respeitável Público!


Peço desculpa, é só mais um bocadinho, que o espectáculo continua dentro de momentos. Não é que o urso tenha fugido, ou a bailarina caído do trapézio. É só amarrar as espias da tenda que estavam em vias de rasgar. Estica-se, estica-se... [logo à noite há sessão].

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Viva Pantagruel!


Outro dia alguém dizia que os livros de culinária são um oportunismo. «Juntam-se umas fichas de receitas alheias, manda-se imprimir e já está».
Esta noite, talvez por ter feito para o meu jantar truta assada no forno, recheada a bacon e a tomate, com folhas de louro e vinho branco, como aliás manda a lei, permiti-me duvidar. Injusta acusação!
Na hora de vir aqui escrever, estive então a comparar meticulosamente o «Sopas, molhos e doces molhados» de Mathilde Guimarães, senhora de seu nome completo Maria Mathilde Almodovar Feio de Paiva Raposo Guimarães, com as «Receitas da D. Gertrudes» de quem no livro não se adivinha o nome.
Claro que há uma notável diferença. É que eu já comi o resultado das artes culinárias da segunda mas nunca os feitos gastronómicos da primeira. E há outra distinção: é que o livro de D. Gertrudes, cozinheira do «Galito», o magnífico restaurante alentejano ali para os lados da Luz, obra do seu filho, um bancário que se fartou do anatocismo e da usura, nunca ganhou o «Prix Littéraire» por «Diplôme d'honneur» da «Académie Internationale de la Gastronomie».
Mas acaba tudo aí. É que no mais não há um mundo de diferença que o leitor descortine pelos títulos das iguarias. A quem pertencerá o «chouriço albardado»? E o «rim de porco com ovos salteados»?  A «sopa de tomate patega»? A «açorda de mariscos»? Dou um doce a quem descobrir.
Espantar-se-á o leitor que eu fale disto. Mas repare que um dia pediram-me para ir apresentar no Museu Militar um livro sobre alimentação castrense. Lá fui e não me saí mal, invocando a minha habilitação própria de comensal do quartel em Mafra  e de apreciador das rações de combate que eram distribuídas ao glorioso Exército Português, isto para não falar na lata de atum escorrida para um pão de centeio e emborcado tudo com uma mini Sagres, em plena tasca nos contrafortes da Tapada, a caminho da Ericeira, que soldado em manobras não se faz rogado e a fome quando aperta é de cão.
Não chegando a encartado «gourmet», mas apenas a literato faminto, termino com um texto de Henrique Lara que guarnece o estupendo álbum sobre sopas e outras delícias molhadas da primeira autora: «uma antologia de sopas é um mapa do céu».
E depois digam que um livro de receitas não é um manual de literatura? De se ficar bêbado de tanto ler!

Nubar Gulbenkian


Há um dia em que um leitor se transforma em editor. Isso sucede pela vontade de que leiam o que escreve. Sucede também quando gosta que os outros leiam o que gostou de ler. Eis o caso do livro Pantaraxia. Um nome estranho, um livro insólito, uma iniciativa atrevida.
O livro está carregado de histórias e de ironia snob. Uma delas é a de que Calouste, o pai de Nubar, pagava ao médico em regime de avença mensal. Quando estava doente não pagava. Logicamente. É assim se se ganha saúde e não se perde dinheiro. À atenção do grupo Medis e outros que tais.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Um filho, um livro, uma árvore


Chega-se àquele ponto em que, tal como numa gravidez, o autor já não pode suportar mais a criatura dentro de si. Anseia que ela saia, ganhe vida própria, respire após o grito primal. Depois, tal como no nascimento, é a ânsia nervosa para nos certifiicarmos que tem os dedos todos, nenhuma imperfeição nos lóbulos das orelhas, vê e ouve e a respiração não tem falhas.
Hoje é o dia de se convocarem os amigos para o baptismo do recém-nascido. Dei-lhe vida e agora não é meu nem sou eu. Vagamente parecido talvez. É assim. Mesmo quando são feios, são os mais bonitos do mundo e dói-nos quando dizem mal. Os nossos filhos, os livros que escrevemos.
Falta só plantar uma árvore, acreditando sempre na força do renascer.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Sapatinho de Natal, de Paulo Lowndes Marques




Todos os anos é assim. Abro o envelope, reconheço-lhe o formato, a imagem da capa, a diferença é a cor.
Paulo Lowndes Marques, advogado, homem de cultura, obsequeia assim os seus amigos. Manda imprimir o que chama o seu Sapatinho de Natal, um em oitavo onde compila textos alusivos à quadra e ao espírito que o Natal deveria gerar e outros que são puro divertimento, ironias, recantos de fino humor como esta enviada pelo seu amigo Luís Santos Ferro: sinal de velhice «quando se pretende saber quanto tempo o seu carro durará em vez de saber que velocidade atingirá».
Uma belíssima prenda Natal. Inspirou-se no Christmas Cracker do diplomata e escritor John Julius Norwich (na foto).
Bom dia a todos e boa semana! Obrigado ao autor.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Napumoceno da Silva, por Germano de Almeida



Germano de Almeida é advogado e escritor e acho que não se pergunta se é mais uma coisa do que outra porque é as duas coisas independentemente do momento.
Recusando a deixar entrar na saponária um fato ataviado em cheviote inglês, o Senhor Napumoceno da Silva Araújo «admitiu, porém, que o seu corpo viesse a pedir terra antes de cumpridos os dois anos - e ainda faltavam cerca de 18 meses».
Depois morreu, foi enterrado, naqueles enterros em que «estamos habituados a tocar djosa quem mandób morrê».
O livro é a história do testamento. Mais do que a expressão de sua última vontade, ele é um livro de memórias. Germano de Almeida, advogado e escritor entendeu isso e disso fez um magnífico romance. Fui buscá-lo este começo de manhã à estante, por me lembrar que ele existia.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Mundo quieto y sordo y tan vacio



Uma pessoa perde-se em trabalho, afunda-se mesmo, e depois dá consigo cercado de livros acusadores que deixou de ler, abandonados, livros em que talvez as próprias folhas pareçam mais amarelas, como quando passa muito tempo sobre uma livraria e tudo cresta e as velhas obras nos recordam o tempo em que foram nossas e assim companhia, alegria e consolo de alma.
Ali estava ele, silencioso, sem um queixume, o livro de Rosa Montero, La Loca de la Casa. Marcado na página 52, onde nos separámos, o momento em que ele fala no monstro da criação, aquele que, vogando no mar violento da tua vida de escritor, que «pero luego, antes de que hayas tenido tiempo de haver nada, antes de haber sido capaz de calcular su volumen y su forma, antes de haber podido comprender el sentido de sua mirada taladradora, la prodigiosa bestia se submerge y el mundo queda quieto y sordo y tan vacio».

Memória da escrita



Fui encontrar-me com ele na tipografia. Começou por ser uma dúvida na cabeça, que é uma coisa que surge aquém da ideia, quando sentimos que a existência está muito depois da nossa possibilidade. Um dia transformou-se num atrevimento, que a força de vontade tornou continuação, as folhas a formarem-se, o sentido a tomar conta da narrativa e depois a teimosia das revisões, a releitura. Agora ali estava ele, no mundo industrial, na fábrica, entre óleos e tintas, operários em fato de ganga. Trouxe-o para casa em caixas de papelão.
Gostaria de o ter mostrado esta noite ao céu e às estrelas, apenas para dizer obrigado. Vim aqui fazê-lo. Tenho um livro escrito e a memória de o ter começado a escrever.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Uma errata


Vinham primeiro as provas a granel, depois as já montadas, com o livro já paginado. Emendavam-se umas e as outras. Havia escritores que escreviam os livros nas provas, que faziam dos tipógrafos dactilógrafos. Havia relações de ódio surdo e de amor disfaçado entre a burguesia escritora e o operariado gráfico.
Há ainda pois resiste toda uma nomenclatura e uma simbologia pela qual uns e outros comunicam. A foto é um exemplo.
Um dia um linotipista - coisa que já não há - disse-me, numa nota a lápis na folha de guarda de um livro então em provas: «agradeço ao senhor autor o favor de arranjar outra pessoa para rever o que escreve!». Queria ele dizer, farto de gralhas, emendar o que escreve. Mas acanhou-se, remendiando-se vocabularmente com a modéstia dos que se sentem de baixa condição.
A vida é pouco mais ou menos isto. Há sempre alguém que gostaria que encontrássemos quem nos emendasse nos nossos modos de dizer, os nossos «enros», como escrevi aqui, citando o António Alçada Baptista. Um dia estamos encadernados e só resta imprimirem uma errata: onde se leu «viveu» leia-se «teria vivido».

Obra Poética, de António Osório



Recomeçando leituras. António Osório viu a sua obra agora reunida num volume, espesso, austero. O compilador chamou-lhe «poesia reunida». Mas há prosa, poética pelo modo de escrever, pela sensibilidade subjacente. Tive alguns livros seus, autografados como este, mas que a vida dispersou. Lembro-me da bela edição da Raiz Afectuosa, a mesma que Eugénio Lisboa diz ter lido pela primeira vez em 1973, assim se iniciando na sua obra: «com os anos/a pouco e pouco/a raiz afectuosa/penetrou/no fundo da terra/até chegar/ao mais pequeno/e mais antigo/veio de lágrimas».
Recomeçarei hoje leituras, essa forma de haver mais um livro que eu poderia escrever.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Absolutos-de-algibeira


Esta manhã acordei com a frase do Alexandre O'Neill na cabeça: «num país de poetas que não lê os poetas». É um ecrito que está publicado na colectânea editada em 2008 pela Assírio & Alvim e onde se diz mais adiante na forma de pergunta: «não passará, afinal, a poesia de um absurdo vício, de um roer-unhas, de um falar-só sem destino como o monologar dos tolinhos?».
Para muitos O'Neill, que viveu da publicidade ou melhor na publicidade, é apenas um construtor de frases, algumas nas agências de anúncios, outras em Literatura.
Quanto às primeiras houve momentos de génio como a célebre - que obviamente não passou - «num colchão sumauma não se dá apenas uma» - quanto às Letras acho que há instantes de genialidade. Pena estes serem fugazes repentes de uma escrita vagabunda.
P. S. O título deste post é uma dessas suas frases, refere-se a quantos, da autoria à crítica, se julgam o número ímpar, o um e único.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Conseguir cumprir




Fazendo minha uma velha piada, tenho tanto para escrever que mal tenho tempo para ler. Acabei um livro, revi provas, e já está outro na calha. Desta vez por força de um contrato com um jornal e uma revista para uma pequena obra a sair em Janeiro. O tema o que me levou a escrever já uns livros: a guerra secreta em Portugal (1939-1945). Depois direi mais. Para já é roubar umas horas ao descanso e conseguir cumprir o prometido.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Parabéns



Parabéns! Dois anos de vida! Muitos anos de vida! Chama-se Círculo das Letras. É uma amorosa livraria, das que vão resistindo, com livros que não se encontram em outros locais. Comprei lá os livros em mirandês, da Campo de Letras, raros. Fica ao Campo Pequeno, concretamente aqui, na Rua Augusto Gil que é nome de poeta. No Natal ofereça livros.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Não se brinca com facas - convite


Terminou tudo, a escrita, a revisão, a capa. Falta só o lançamento. Vai ser ainda antes do Natal, no dia 15. Será um duplo lançamento. Da estreia do autor no género romance, depois de ter publicado um livro de contos, editado pela Presença, e de início de uma editora, a Labirinto de Letras, cujo próximo livro, a editar em Janeiro será uma tradução. A seu tempo notícias.

O mundo sínico


É um poema seu sobre o Natal... [Maria Ondina Braga]

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A banalização da escrita


Há assim um fenómeno que acaba por banalizar os escritores... [Clarice Lispector]

The Waste Land, de T. S. Eliot



Perdido em revisão de provas, sem tempo para vir aqui, acredite-se, lembrei-me de ter encontrado há uns anos em Londres a edição facsimile do poema do T. S. Eliot, The Waste Land, com notas de revisão do Ezra Pound. Ao passar pela caixa registadora o empregado, um jovem, lançou-me, guloso, os olhos ao livro. «Onde o encontrou?», perguntou-me subitamente entristecido. Respondi: «ali, atrás de uma pilha de outros, caído».
Coitado dele, sonhava tê-lo há anos e agora era eu quem o tinha na mão e o ia levar. Hesitei. Não fui capaz. Dei-o depois à minha filha para não ser eu ladrão de um livro alheio.
Era dele a obra, pela lei da precedência do desejo sobre a posse.