domingo, 29 de maio de 2011

A mítica marrafa

Creio que foi no outro fim de semana que acabei "As Três Mulheres de Sansão" de Aquilino Ribeiro.É lugar comum dizer-se que rico é o seu vocabulário, provindo das arcas velhas da língua, que o leitor só desvenda em sua densidade de elucidário na mão.
É lugar comum reconhecer-se que poucos conhecem como ele a alma humana, situado o homem nas suas raízes telúricas, pó, húmus, seiva e cheiros, vida repartida com a animalidade de que proveio.
É lugar comum encontrar-se nele a razão social literária e sem militância, o anseio por um mundo outro de que os livros são o reverso pelo retrato vivo de um mundo insuportável que anametiza mesmo quando apenas o descreve.
O que não é lugar comum é o milagre que renasce em cada leitura da sua obra. Nesta novela são os seus conhecimentos bíblicos, que o seminário lhe afundou nas meninges a contar-nos um inaudito Sansão, «instruído das imundícies da carne, mas não calmado», juiz «terrível martelo de Deus contra os gentios», porque «andava muito relaxada a moral pública, eram bastos como sarna os delinquentes».
E depois foi Dalila a podar-lhe a gaforina, e assim ele «por mais que se encabritasse» já sem tesura nos braços nem arrimo na gana, em molície agora e lassidão minado e por isso indefeso, caído às mãos dos filisteus e à sorte dos seus deuses mansos, que para feroz, vingativo e impiedoso já bastava Jaweh que o deixou cair como a cão tinhoso pela longa estrada do pó do abandono.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

A Paixão Chinesa

Quando Leopoldo Danilo Barreiros escreveu "A Paixão Chinesa de Wenceslau de Moraes", anexando-lhe a correspondência que trocou com o filho do insigne escritor, João de Sousa Moraes, quis no fundo reabilitar a sua relação amorosa daquele com a chinesa "Atchan" [abreviatura do nome Vong-Ion-Chan]. Porque havia ficado a lenda de que de repúdio se tratava quando ele partiu para o Japão, onde encontraria dois funestos amores com Ó-Yoné e Ko-Haru, as quais lhe faleceriam em circunstâncias dolorosas que o arrastariam para o desespero, porta para o exílio em Tokushima.
Encontrei-o agora no "Chaminé da Mota", numa reedição de Cecília Jorge e Beltrão Coelho, que li, porque pequena, nos intervalos de duas pesadas obrigações.
A iniciativa é carinhosa. Não difamar um amor mesmo quando falhado. Comovente, sim, ver como o filho daquele a quem os japoneses chamavam de "Portugaru san" [o senhor Portugal] se refere, em perdão póstumo, à perda da intimidade do pai que, mantendo o sustento, se lhe tornou distante, ele um dos «tocados do mal da tristeza», pai que se correspondia com ele, com o irmão e com a mãe através de Feliciano Francisco do Rosário, um macaense que servia de benévolo intermediário epistolar.
Viveria, isolado, uma vida "retroactiva", moendo saudades, cortado o cordão umbilical à Pátria dos portugueses. Para o degradarem muitos apodaram-no "o homem que trocou a alma". Nunca foi, porém, outra coisa se não português, habitáculo remoto da alma portuguesa no seu ocaso fatal.

domingo, 15 de maio de 2011

Biblioteca

Sigo-a por todo o lado na forma de quanto escreve. E por isso só comprei hoje o livro quando descobri que tinha um conto seu, publicada a obra pela FNAC para comemorar o dia mundial do livro.
Ao tentar explicar-me dei conta de que a minha memória falhava pois já não lembrava todos os títulos a que dera vida e não foram muitos. Mas tinha fixado o essencial do enredo, e tinha sobretudo um vinco fundo na sensibilidade derivado de a ter lido. E o espanto do primeiro dia.
Tal como num conto policial, Dulce Maria Cardoso vai deixando, pegada sobre pegada, os sinais sobre o mote «os livros salvaram-me». Não se fala nisso porque há que salvar o prazer de quem ler e que siga o caminho assinalado que leva à descoberta. «Identificar os acasos que nos nos trouxeram ao que somos só nos torna mais frágeis. Fazemo-lo na esperança de percebermos como nos aconteceu tornarmo-nos o que somos», é uma das suas frases que dita a lógica da escrita, o retrato de um mundo inevitável mesmo mas acidental.
«O pensamento dos velhos é circular», diz a personagem quase depois do arranque da breve narrativa, ou di-lo ela por ele pois há um tempo em que tudo se confunde. Só que ao velho sucedeu o azar de uma fatalidade. Surgiu esta história «livremente inspirada em factos reais».

domingo, 8 de maio de 2011

Viajando com Qfwfq

Levei-o comigo. São histórias a que chamou de cosmicómicas. Invulgares porque não é habitual quem situe aí a ficção. Só que não é ficção. É a realidade no seu íntimo atómico, a intersecção do espaço e do tempo, reduzidos como na relatividade restrita ao indiferenciado. Como quando o perseguidor projecta todos os sentimentos no cone de luz emergente dos faróis da viatura, voando à procura da amada e do provável lugar para o qual o errático movimento a transporte e onde o outro amante possivelmente a encontrará, o ciúme e o desejo a sobresimplificarem a complexidade dos seres e tudo o que neles os torna humanos até a expressão facial e a dor do enamoramento infeliz. Ou quando o tiro que atingirá o perseguido só atingirá o seu instante de máxima possibilidade quando as filas de trânsito se entrecruzarem e o perseguidor alcançar o ângulo certo para o disparo só que o inverso surge como real, ainda que improvável, e morre quem queria matar e assim a vida se cumpre.
Engenheiro, Italo Calvino liberta-se do que a presença nossa e dos outros gera como espelho deformante, e escreve com uma beleza extraordinária porque rigorosa, segue a personagem abstracta em cujo nome nem doces vogais existem mas é a aspereza  Qfwfq, esse ser que nem é criatura humana é mas nele se contém a totalidade da existência. O livro chama-se "La memoria del mondo".