domingo, 21 de novembro de 2010

Jorge de Sena: o sulfúrico verbal

É um grande escritor. Preferiu viver no estrangeiro, exilando-se. Uma entrevista recentemente publicada pela RDP mostrou que esteve em Julho de 1972 na então Lourenço Marques, a falar sobre Camões, de que é especialista. Por permissão do Governo de Marcello Cateano. Entrevista que foi censurada.
Mau grado o mérito literário, manda a verdade que se diga que Sena era "torto" de modo de ser, arrogante, maledicente, com um ego do tamanho do mundo e que, humano, teve horas de fraqueza. Os biógrafos, que adoram escrever hagiografias dos santinhos das suas religiões literárias e políticas tentam disfarçar o mal para cantarem hossanas ao excelente. As gerações que lerem estas falsificações da História, um dia descobrirão a verdade.
Tendo morrido no estrangeiro em 1978, recentemente os seus restos mortais foram transladados. Com a cerimónia fúnebre vieram as homenagens. A Situação precisa sempre de encontrar referências, memórias, valores. Os mortos estão disponíveis, porque há poucos sobreviventes que se lembrem da História toda e os que se recordam receiam desalinhar o passo no desfile da vitória. O Panteão público é uma forma de os vivos se envaidecerem com os que foram, fazendo-nos crer que são a eles semelhantes. Os políticos pelam-se, assim, por homenagens.
Jorge Cândido de Sena exilou-se «voluntariamente» no Brasil em 1959. Deixou com isso uma aura de anti-regime e de mártir pela liberdade. Acontece que nas igrejas de glória há muitos santos com pés de barro. No seu caso a racha no gesso é o interesse, que a maledicência alarga, desfeando a aura.
O exílio trouxe-lhe a cidadania brasileira. Alguns viram nisso um gesto de desesperada revolta contra a Pátria madrasta, ele que, demarcando-se em sobranceria moral escreveria «que adianta dizer-se que é um país de sacanas? Todos o são, mesmo o melhores, às suas horas, e todos estão contentes de se saberem sacanas».
Só que esse fazer-se brasileiro foi afinal um jogo de conveniências. «Sou, sim, cidadão brasileiro», diz ele numa carta escrita a Vergílio Ferreira, em 4 de Julho de 1965, nas vésperas de se mudar para os Estados Unidos «nem poderia deixar de o ser para a estabilidade da minha carreira universitária, e para fazer as provas de livre-docência».
E para que não houvesse dúvida que sua a lepra de troca-Pátrias era menos lepra do que a lepra que chagava outros, intriga, demarcando-se das razões alheias, ridicularizando os demais Sena goza: «as razões do Agostinho da Silva, que já o era [brasileiro], quando eu cheguei em 1959, são outras: relevam do Espírito Santo, do Quinto Império, do facto de Deus ser brasileiro e baihano, e de ele querer apoio oficial para as manigâncias afro-asiáticas que, iluminado por aquelas ideias, empreendeu». Exemplar!
Claro que Sena sentia-se ímpar. O modo arrogante com que denegria tudo o evidencia: «A nossa intelectualidade», dizia sem excepcionar, «é um bando de cretinos pretensiosos e jornalísticos; a nossa universidade um bando de medíocres promovidos», resmungava, em sulfúrico verbal, numa carta de 1 de Maio de 1961 ao autor de Aparição que, numa resposta complacente, se lamentava também deste país «que tem a forma de um caixão». O que, claro, na sua boca ácida já era uma gentileza, mel mesmo para quem escrevia, para o mesmo desafortunado interlocutor: «eu, por mim, considero a humanidade vil, hipócrita, porca e canalha». Sem excepção, claro.
Mas o caso foi quando o autor de Sinais de Fogo se confrontou com um terrível pedido do Jaime Casimiro, para que assinasse «uma petição ao Presidente da República contra a censura». Ora aí é que as questões se complicaram, os princípios a misturarem-se com o interesse. Estávamos em 3 de Novembro de 1953.
«Respondi-lhe que aplaudia que se fizesse tudo, eu próprio nas entrelinhas fazia o que podia – mas não estava em condições de assinar», confessa Sena.
E porquê, perguntará o leitor? Ora! Por causa afinal de uma viagem oficial à Índia para a qual fora proposto pelo engenheiro Carlos Couvreur.
Só que havia nele o propósito de «resistir pela submissão», como se exprimiu no livro que é a sua autobiografia moral "O Físico Prodigioso". Assinar a petição e era correr o risco de não ir.
A 21 de Dezembro era recebido pelo Ministro do Ultramar. A 15 de Janeiro de 1954 anotava no seu diário: «ontem soube que a ida à índia, possivelmente por intrigas do Laboratório, está em águas de bacalhau». Não iria.
«Teria sacrificado a minha independência essencial a uma viagem às Índias, que ainda não é certa?», perguntava-se secretamente no dia em que lhe trouxeram o abaixo-assinado. Foi um assomo de verdade. Não assinou e não foi no cortejo. «Ninguém quer saber de mim», diria mais tarde. Compreende-se.

domingo, 14 de novembro de 2010

Myra, uma história íngreme

Acabei de o ler há momentos.
Se a plausibilidade de uma narrativa fosse critério, talvez Myra, o romance de Maria Velho da Costa, devesse ser revisto em alguns dos seus momentos. Sobretudo o final, que soa forçado, a introduzir na história ingredientes que lhe tentam trazer, com excesso, o clímax dramático: Gabriel assaltado por meliantes num carro de polícia roubado, morto e abandonado numa valeta de uma auto-estrada, tudo com muitos palavrões de todos, e Myra, a rapariguinha russa de destino viandante, jogada num bordel onde um casalinho de criancinhas são prostituídos à mercê de «poderófilos» e tudo a terminar em suicídio, em salto da janela, ela e o cão, porque os «suicidas são sempre assassinados» e assim também se morre às mãos dos outros. 
Descontando isto, e muito do que tem um hálito a paráfrase de acontecimentos recentes, e uma lógica de caracterização anti-macho na configuração dos personagens, em que o único que na aparência se salvaria é capado e impotente e morre não sem antes aflorar quão sádico seria no sexo e instrumentalizador até ao vómito na fantasia do amor, trata-se de excelente Literatura.
A leitura prende, os quadros sucessivos da exposição daquele destino humano, de esperança em desespero, criam uma galeria de horror de que o leitor é, afinal, o mais exposto, deixando ver as chagas que abre cada linha na sensibilidade de quem lê. Além disso, a manha e a tenacidade, criando aquela única força de sobrevivência que são na tragédia, «rumo à atrocidade», o mínimo que resta, comovem, miúda e animal à mercê da carnificina que é o mundo de todos os outros.
«Nada é mais contagioso do que o mal», diz-se num momento do livro e por isso Myra talvez seja a história da malignidade, feita ficção.
O crime por receio do qual Myra inicia na página 56 a sua viagem, que é a viagem da sua fuga, resolve-se na página 136 com um não ter morto. «Matara e não matara. Não fazia dela menos assassina, o que conta é a intenção».
Livro sobre a alma russa, vivido suburbanamente em Portugal, livro de «criaturas íngremes», tudo visto, vencidas as minhas antipatias, digo: um excelente livro.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Maria Gabriela Llansol: solve et coagula

Fica sempre a dúvida sobre se estes papéis são para ser editados. Se não serão demasiadamente privados ou excessivamente provisórios. É que são notas de leitura, a apontamentos para melhor memória, ou suspiros de circunstâncias. Escritos porque se sentiu a agonia do aperto financeiros, o brotar da esperança em dias melhores, porque amou ou sentiu falta de amor.
Claro que o ser-se escritor sujeita uma pessoa, como se a sua alma pertencesse aos leitores, na parte em que se espalhou, ectoplasma espírita, em papel impresso, ou no que ficou escondido, na aérea respiração de onde emana a ideia e o sentimento.
Senti isto ao ler o volume segundo que compila excertos dos setenta cadernos de escrita de Maria Gabriela Llansol. Editados pela Assírio & Alvim.
Compreende-se, ao lê-los, quanto as ciências ocultas, a alquimia, o mundo esotérico preencheram os interstícios do seu ser sensitivo e pensante. Entende-se como é que foi no húmus da Natureza que ela encontrou a sua natureza. Interpreta-se melhor o tom errático, a incompletude, o solver-se e coagular-se do processo de escrita.
Mas é com pudor e vergonha que se passa por certas páginas. Onde está a carência e o desejo, a ausência e a falta. O livro, franqueando-lhe a intimidade, «levantou-lhe a ponta do vestido que era um vestido de larga contemplação». Como todos os diários, são livros de cabeceira.