quinta-feira, 31 de maio de 2012

O território do Amor

Eterna como o acto de escrever ou o acto de contar para os que não sabem escrever, a narrativa do Amor, é a expressão mais lídima da Literatura. Porque nela se joga a totalidade do Homem, o carnal ser e a inexplicável alma. Porque nela se cruzam as miríades de acasos de cujo fruto surge a existência. Porque ela é, afinal, a História da Humanidade.
Há seguramente romances de ideias, poemas sobre sensações, relatos de epopeias. Mas o que são os primeiros se não a exteriorização fria de um sentir cristalizado? O que são os segundos do que condensações miríficas de um extenso e intenso viver? O que são estas últimas do que a toada da paixão, heróica, guerreira, contos de sedução, conquista e despojamento?
Lembrei tudo isto ao ter encerrado esta manhã a Noite Bengali, o romance de Mircea Eliade, que pressinto auto-biográfico. Escrito em 1933.
O livro enleia-se com o leitor, num amplexo que lentamente o envolve, docemente ingénuo no princípio, o que se conta como se saído, balbuciante, dos lábios da inocência. Depois são todas as idades pelas quais o homem se faz homem, o surgir do desejo no território da contemplação.
Através do cerimonial do encantamento, Maitreyi incensa, como um perfume essencial, o espírito imaturo de um europeu, prático mesmo que sensível, incerto nas suas convicções de cristão e de homem branco, povoa-lhe, como uma hipnose os murmúrios do seu sentir até ali esvaziado em trivialidades, fere-o até que a dor não doa, a capacidade de a carne desejar a sua carne, um corpo atrair-se por outro corpo.
Romance de amor em meio hostil, está nele presente o território racial da Índia e sua brutalidade, o horizonte da sua ancestralidade, ainda que incompreensível. Mas é sobretudo um romance sobre a ilusão enovelante da paixão, os rasgões do ciúme no coração, a busca dos Himalaias do Absoluto a tornar-se uma caricatura grotesca pelo desastre quotidiano no Ganges do relativo.
Só talvez em alfarrabistas se encontre a obra. Nem sei se aí. Lia-a. Aos poucos tenho reunido muito do que o seu autor escreveu, no âmbito da História das Religiões, das Filosofias Orientais, do Esoterismo. Sinto-o como um vizinho por ter vivido aqui perto de mim. Está morto e nós ainda não. Ao lê-lo trazemo-lo à vida. Entre os que tudo avaliam pela política uns odiá-lo-ão como a Ezra Pound, rendidos, porém, à secreta confissão darendição ante a genialidade. É este o local próprio para aferir do génio quando se perde pela floresta do Amor, noctívago, sonhador, e nos conta como foi. Mansamente.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Carta ao Futuro

Começara a lê-lo na Biblioteca Pública Municipal do Porto, mas não conseguia concentrar-me. Não pela complexidade da escrita, mas pela densidade do sentimento que induz, a profundidade de pensamentos a que nos conduzem as palavras. Dispersei-me, voltei atrás. Requisitei-o, enfim. Trouxe-o comigo em busca do tempo e do lugar. No dia 19 terei de o devolver. Lá estarei. 
Comprei-o, entretanto, já não na edição primitiva da Bertrand, sim, na reedição da Quetzal, agora publicada. Não pela posse mas para o não perder, porque os livros hoje circulam entre os expositores das livrarias e as guilhotinas dos editores, reciclando o que tenha pouca venda, para poder sublinhar a frase, o trecho, toda a página, anotando, numa osmose entre o leitor e o lido o escritor e o que deixou escrito.
Comecei a lê-lo ontem à noite ainda, talvez na melhor hora, em que o silêncio amigo nos protege na esfera íntima do recolhimento, o corpo fatigado, os sentidos, enfim, tranquilizados. Madrugada, já.
É uma carta, escrita a partir de Évora, lugar simbólico do seu professorado, a cidade que «ignora a exactidão do presente, conhece apenas o alarme da memória», cosmos de onde surgiu o marco miliário da sua escrita, o percurso iniciado com a Aparição
Uma carta que faz nascer vontade de escrever cartas, todas as cartas que digam tudo quanto há para dizer a pessoas a quem nunca o dissemos, a quem nunca escrevemos, àqueles que há tanto tempo nos escreveram. Uma Carta ao Futuro.
Regressei agora ao mesmo lugar, este sofá junto à janela de onde contemplo a frondosa árvore que a iluminação pública incendeia, lugar de vigília, zumbindo, autómatos, os automóveis e seus destinos de monotonia mecânica. Aqui estou, Vergílio Ferreira. Retomo a leitura. «Tenho apenas esta vida para viver, e seria uma traição que eu faltasse à sua entrevista - essa entrevista combinada desde toda a eternidade», dizes, e como eu te compreendo na transitoriedade das coisas, na eternidade da existência.

sábado, 12 de maio de 2012

Um livro por acabar, uma vida por esgotar

Ganhei o hábito de escrever sobre os livros que estou a ler pouco tempo depois de ter iniciado a leitura, assim como pouco antes de a ter concluído. Não sei qual a razão mas na vida nem tudo tem de ter uma explicação.
Guiado pela inflamada biografia que dele escreveu Stefan Zweig, iniciei a obra de Fiódor Dostoiewski com o seu primeiro livro "Gente Pobre" ou "Pobre Gente" como se deu título em algumas traduções.
Leio na versão da Editorial Presença, por ter sido traduzido directamente do russo por Nina Guerra e Filipe Guerra.
Estava prevenido para duas circunstâncias que a leitura confirma nesta breve e aparentemente simples obra.
Primeiro, que tal como na monótona estepe se acentua qualquer saliência desconforme com a chã planície, também aqui, depois de páginas de superficial vulgaridade, porque a vida dos quase sem nada é uma vida com muito pouco, há a inesperada grandiloquência dos momentos em que o leitor sente a visitação de um sentir que o agride na cicatriz do já dorido. E para isso é preciso a paciência de quem lê, o saber esperar que a beleza irrompa, tal como na Natureza do longo inverno que irrompa a primeira flor primaveril. Uma beleza ferida, porque não há gente feliz nem os que, na abundância do ter, poderiam estar melhor e por isso bem.
É talvez a segunda faceta que caracteriza, porém, melhor este modo de escrever, que já se pressentia aos vinte e quatro anos da vida do autor e que, segundo aqueles que a conhecem, lhe assinalar a peculiaridade de toda a obra: é a não linearidade das personagens, não só pelos seus labirintos interiores, mas pela mutação quase imperceptível que nos vão trazendo e que no final se resolve tornando-os os outros de si próprios.
No livro, na aparente individualidade de cada pessoa jogam-se, em constante dissonância, as gradações do Ser e até a sua negação, que vão gerando, como num jogo de sombras, cambiantes no cromatismo dos cinzentos em que a trama se desenvolve, a negritude da clausura sempre presente, em que só a memória traz a nitidez do soalheiro e da arborescência e seus odores. E, no entanto, no seu dar-se ao que não eram está a essência intrínseca do que, afinal, são.
No caso é uma história de duas profundas misérias, numa delas talvez mais patente a da vergonha pública ante a ostensiva pobreza e irremediável, noutra a do impudor de aceitar sabendo que se tira da quem dá porque há a necessidade feita inevitabilidade.
Temperada com o equívoco perverso de uma relação que começa como a de uma dedicação, sempre espistolar, serôdia, embora, de um modesto funcionário face a a uma quase púbere adolescente e se transmuta, na alma em botão daquela figurinha a quem, enfim, alguém se dedica, num enamoramento que lhe incendeia os sentidos, a narrativa vai correndo todos os cambiantes subterrâneos do rebaixamento, no final, ele, arrastando-se entre a vileza e a humilhação, alcoolizado, ela a partir, levada, a história interrompida com o cerimonial do adeus.
Calculo que terminará assim, pois ainda não acabei a leitura.
Há livros que gostaríamos de não terminar para poder interferir na vida das personagens e dar-lhe um final feliz.Como na nossa vida, vivendo eternamente, o Amor até ao ómega de um alfa amoroso que nos deu o ser.


sábado, 5 de maio de 2012

Stefan Zweig: o tormento de Deus

Não me canso de o repetir: é um extraordinário escritor. Mesmo que esteja esquecido, ainda que confinado às prateleiras do mundo de ontem. 
Stefan Zweig joga-se, na integralidade do seu ser, do seu corpo e alma, da sua intimidade e de toda a sua história para dentro dos livros que escreve. E esventra aquele sobre quem escreve, dilacerando aqueles para quem escreve. É nesta carnificina brutal em que os seres se despedaçam que o mundo, na sua unidade, síntese de contrários, fruto de antagonismos, que se exprime a sua Literatura. 
E, no entanto, na aparência, a indumentária cuidado, o rosto aprimorado, o fundo imperscrutável dos seus olhos, sugerir-se-ia o pacato burguês, quotidiano, em paz consigo e com o seu conveniente mundo.
Teria o fim trágico em que viveu. Não foi mais um clímax estrelar pulverizando a galáxia do seu cosmos, foi só o fim do corpo, a interrupção da vida. Esgotara-se. Suicidou-se com sua mulher. A última página agonia os sentidos, as mãos dadas, já só o resíduo dos corpos como se tivessem sido inabitados, sós como se o mundo já não existisse.
Leio-o no que escreveu sobre Fiodor Dostoiesvski. Dir-se-ia que é ele quem ali está naquelas páginas ardentes, menos a prisão, menos a miséria, menos a agonia do mau viver público. É um texto tremendo. Nem sei se fale dele aqui, tal é o silêncio que se nos impõe, ante uma tal escrita, face a um tal viver. 
Entre os extremos do bem e do mal, na agonia de a todo o instante o óptimo se transmutar em péssimo, são seres excepcionais, o ímpar do génio, o tormento de Deus.