quinta-feira, 7 de junho de 2012

Viajando com a Justiça na mala

Há muitos Advogados escritores. Quanto à maioria a escrita acabou por devorar a advocacia, tida por indigesta. É o caso de Alçada Baptista, ou mais recente Graça Moura, ou mais antigo Rodrigues Miguéis.
A vida forense dá material humano, cenário, contexto e pretexto para a escrita. Depois, quando se é Advogado, escreve-se como se defende uma causa. É assim o livro de Francisco Teixeira da Mota sobre Henrique Galvão [ou permita-se a referência pessoal] a minha biografia de Rogério de Menezes.
Numa viagem de comboio li o que já trazia há semanas para ler, o pequeno livro de crónicas de Rui Patrício.
O autor tem rasgo para a observação, o olhar atento, mesmo quando oblíquo, sobretudo quando sobre a invulgaridade, como ao escrever sobre a linha serpentina da beleza. E tem estilo literário para contar, criando no leitor a ilusão do local e tornando a leitura um desfolhar.
"Mapa-Múndi" da Justiça [e o acento deve-se ao facto de a expressão estar aportuguesada porque no latim mapa dobrava o p e inexistem acentos] tem talvez de desnecessário a super-abundância de lugares exóticos, a gerar a pergunta, que o próprio assumiu como sendo a óbvia, sobre se ele teria de facto estado em tantos lugares quantos aqueles. E poderia ter evitado a menção pessoal à presença em tantos hotéis de cinco estrelas. É que, se bem que em época de crise as pessoas gostem de fantasiar o luxo que não têm, e assim era lido Graham Greene nos tempos duros do Guerra, descrevendo iguarias e locais se não sumptuosos ao menos aprazíveis, na época que todos sofremos duvido que isso gere aproximação, fomentando talvez distância. 
Li o livro do fim para o princípio e do princípio para o fim. Quando se aproximava a terra de ninguém do meio da obra reconhecia que no panorama tão generalizado de incultura, em que há quem faça gáudio em proclamar que, por causa da profissão, há anos que não lê um livro que não seja jurídico, ainda há oásis de diferença.
Um livro não faz um escritor. A crónica é um exercício. Escrever breve é uma arte. Nisso o autor tem de trabalhar a escrita. Os livros de viagens são uma espécie difícil porque há o lado feio que o Guia Michelin evita.

domingo, 3 de junho de 2012

Ode em viagem

Métrica irregular, exaltação sentimental, está na ode a odisseia e o clamor, a turba coral, o ser e tudo quanto é. Não é um declamar mas um gritar, não o grito mas o coro da revolta. É sobretudo o homem soerguer-se em nome de toda a sua humanidade.
Lemo-lo e torna-se impossível não encontrar ecos nossos de um Pessoa, a irmandade com um Almada, ou nele não surpreender a desordem clamorosa de um Ezra Pound.
Falo hoje da Ode em Viagem, a sua edição de Março deste ano, editada pela Livros do Mundo
Falo, porque decorreu o tempo em que a li, lendo em alta voz, para ser ouvido e fazendo respirar no meu ser a insuflada declamação, porque exausto, enfim, o esgotamento do grande final, o pico extático em que «terra à vista!» se toca o chão, «suave e frágil, como não haver destino» e onde «tudo está certo».
Deixem-me dizer que Fernando Cabrita é tanto mais excelente quanto mais se afasta da óbvia referência ao reconhecível pelo conhecimento e voa, poeta alado, pelo mundo simbólico das menções significativas intuíveis pela sensação. 
E excelente quanto mais se sente no seu coração de leão não o homem transitório do que é precário, ainda que português, mas o pulsar das dores, aflições e risos em clímax de todos quantos ecoamos na sua voz, no mais, emudecidos ante o eco.
Poema de argonauta, herdeiro dos tempos corajosos do que foi a procela marítima que nos levou às Índias da maravilha, ou a eternamente ficar no cais da saudade, um volante a rodar, alucinado, dentro de nós, a mala eternamente por fazer, é ele hoje, neste poema, sonho fantástico e loucura de imaginação, comandante e equipagem, passageiros e viagem, rota e destino nessa magnífica ave mecânica que se auto-sustenta sobre os céus «vogando etéreo como um cometa sem idade», ah «ó aviões que partem para toda a parte e para parte nenhuma!», nave que «desliza no meu sonho, entre sonhos que se vão».
Sobre tudo quanto existe e sobre tudo quanto poderia existir «tudo morre de novo, instante a instante, e de novo renasce, em ressureição vivaz, e zumbem conversas, e entrechocam-se passagens, e ouvem-se línguas diversas e diversas vaidade».
Magnífico! Magnífico! Viva!
Fernando Cabrita, advogado por acidente momentâneo, poeta por definitividade, viva! Entre a «fuzilaria de sons inúteis e de invisíveis silêncios» a tua voz troveja, agigantando-se em poema!