domingo, 22 de agosto de 2021

A larva racionalista

 


Romeno, Constantin Virgil Gheorghiu estudaria filosofia e teologia em Bucarest e Heidelberg. Por ter servido como Secretário de Embaixada durante o regime do Marechal Antonescu, seria preso ao terminar a 2ª Guerra quando as tropas soviéticas ocuparam o seu país natal. 

Rumaria a Paris e publicaria aí o que é a obra pela qual é mais conhecido, "A 25ª Hora" [título original Ora 25] uma denúncia dos totalitarismos. Em 1963 seria ordenado padre da Igreja Ortodoxa. 

Li este livro na edição original. Foi escrito em 1956 e a Bertrand publicou-a em 1957, sem data de edição, com tradução de Maria Isabel Cunha Dias Miguel e dele tiraria uma segunda edição em 1970. Foi-me difícil trazê-lo aqui por não achar modo de o dizer.

A narrativa comove, ferindo por vezes a sensibilidade. Pressente-se na leitura algo de autobiográfico neste professor romeno a viver na Bulgária, dividido entre a obediência devida às autoridades locais do País estrangeiro onde presta serviço e o dever humanitário de salvar quantos possa da violência feroz do ocupante a que o País se rendera, subserviente, qual código de honra de marinheiro ante naufrágio e «há na Bulgária, na Roménia, mais pessoas que se afogam na terra do que no meio do oceano em plena tempestade».

A narrativa ocorre na Bulgária e na Roménia já sob o domínio soviético, trazendo para a Literatura a experiência vivida pelo autor. 

«José Martin era agora professor na Universidade de Sófia e director do Instituto de Antropologia Búlgara». O seu trabalho, financiado por um "Instituto de História Natural dos Estados Unidos" era «medir, pesar, fotografar, penetrar nos segredos da vida e da alma» de todos quantos na Bulgária pudessem ser assim inventariados, por ser a Bulgária tida pelos americanos, como um dos povos "atrasados", como «as tribos negras da Austrália, os Esqimós, canibais, a Grécia, os Pigmeus, as tribos indianas, a Roménia, a Índia». 

Há nisto uma amarga ironia e um substrato antroposófico racial que a narrativa vai tornando presente através da estonteante imaginação do autor, o da aniquilação da pessoa pela colectividade, o ar irrespirável que se vai acumulando ao longo das duzentas páginas deste meu exemplar de folhas tão oxidadas pelo tempo que passou.

Livro em que está presente a expiação da culpa, a culpa pela incapacidade de salvar na terra aqueles que os homens condenaram, há, a perpassar a escrita, a tragédia existencial entre o místico e o racional, este como opressor, aquele como salvífico, a danação do Homem sem transcendência,: «um místico, um homem que tem fé, pode libertar-se do pecado. Um homem lógico leva o pecado até à morte».

É seguramente uma obra de empenhada denúncia, mais do que a sorte dos seres humanos que, quase vultos, povoam as suas páginas, o destino cruel a que os arranjos da 2ª Guerra condenaram aqueles povos: «Os senhores entregaram aos Russos os Romenos, os Búlgaros, para salvar Roma, Paris, Londres. Entregaram-nos aos Russos no decurso das vossas conferência de Teerão, de Yalta, de Potsdam», em que o cinismo da diplomacia tenta convencer-se, em conveniente hipocrisia moral, de que os novos tempos trazem a oportunidade da convivência pacífica, e do compromisso, cómodo e utilitário modo de vida entre os Estados, regra de vida do Embaixador romeno que, não por acaso, tem como nome "Pilatos", em alegoria ao Pilatos bíblico que, assim o autor no-lo apresenta, na Última Ceia, tinha já o cheiro do Estado «tinha concluído a aliança com a Polícia».

Relato de um universo de aprisionamento, de mimetismo, em que «todos os homens têm um rosto semelhante», mundo de rendição, de seres que, tocados no ombro, levantam os braços e gritam, apavorados, «rendo-me!», rendição pela qual ansiavam, ansiosos de desistência.

Há em tudo quanto li, e li tudo, o que creio ser a mais conseguida faceta deste modo de escrever, a figuração do verme, "racionalista" porque apenas pode viver no cérebro do Homem, que «com o cérebro cheio de vermes o Homem não deseja na vida senão a "pequena lógica", a quotidiana, instrumental para a sobrevivência imediata, mas mutante «que deixe de ser válida de um dia para o outro».

A "larva racionalista" que faz aquele em que foi feita penetrar «perder primeiro a alegria. Depois perde a tristeza. Nunca mais está alegre nem triste. O verme racionalista devora em seguida outro segmento do cérebro, o Homem fica sem nenhuma espécie de ideal, sem nenhuma esperança. Depois o Homem que tem o verme na cabeça torna-se indiferente à noção de direcção. Todas as direcções lhe são indiferentes. A vontade começa a fatigar-se por sua vez. Tudo o que pode acontecer a este Homem lhe é indiferente.»

Livro tremendo, pena estar esgotado, actual, necessário. A vida repete-se mesmo quando a História parece diversa. O Homem é sempre "O Primeiro Homem".

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Escorrer do próprio verbo

 


Agustina surpreende-nos íntima mas secreta pela sua escrita quando se interpõe aos seus personagens, tornando-se narradora e amiúde comentadora, ou quando se revela através deles.

Mas foi talvez nesta correspondência que um conhecimento deu em amizade e esta em sentimento de pertença, esta naquele sentido em que as almas, diferentes porque diversas, se encontram num relação de mútuo e tão próximo reconhecimento.

O encontro deu-se no que seria uma ocasião que lhe deixaria azedas recordações, em Julho de 1959, em Loumarin, perto de Aix-en-Provence, num colóquio de escritores, patrocinado pelos EUA um dos «meios de combate contra a a influência soviética na Europa durante a Guerra Fria».

Como se percebe por esta troca de cartas e não se supõe de modo tão nítido no livro "Embaixada a Calígula", livro de viagens em que esta é uma das referidas, nem os organizadores do colóquio a sentiram como parte do que ali estava e se pretendia e ela própria se apartou de tudo, antipatizando com o que lhe foi dado assistir, essa «majestosa mediocridade» lhe chamaria, acintosa no seu sentir verdadeiro. Antipatia, com uma excepção, porém, a do seu interlocutor nesta correspondência, o escritor Juan Rodolfo Wilcock, que se inicia nesse ano e se prolonga até 1965.

Trata-se, como acentua o prefaciador, Ernesto Montequin, de laços que oscilaram «entre o afecto e a malícia, entre o respeito e a insolência, entre o fascínio e o temor».

Ante as cartas, editadas em abril de 2012 pela "Relógio d'Água, o leitor sente a pulsão errática do desejo, o do encontro, adiado pelas circunstâncias ou tomadas as circunstâncias como razão para o evitar.

Para quem queira achar a pessoa da escritora para além do que escreve, há aqui uma relativa oportunidade, não fora Agustina, mesmo aqui, não largar a pele de quem não se abandona para além da sua escrita. Mesmo assim, momentos surgem, inesperados, em que a volúpia das sensações irrompe para além da contenção das conveniências e seus encargos, como quando em Agosto de 1960, escrevendo de Esposende, para o «meu querido John», como que sussurra: «e nós escorremos do próprio verbo, gracioso e amantíssimo companheiro meu», para longo se disciplinar, como a soerguer-se, para o rictus da pose, clamar, em desespero: «Todas as coisas em meu redor murcham na minha presença, em sólidas, demasiado mortas, recordações».

É um livro requintado, desigual, Juan Rodolfo Wilcock tão aquém, fugidio, cerimonioso mesmo quando superficial, desentendido ou a desentender-se do que lhe chega em afagos de cuidado e mimo mesmo quando em rompante áspero, tal qual foi Agustina, ou quando «vagabunda nos meus costumes e volto a ouvir-me hermeticamente».

É, sobretudo, um livro dorido de revelações: «Vivo a minha crise mais terrível, de dúvidas, de neurastenia, de horror pelo mundo e por mim mesma», escreve do Porto, em Outubro de 1960, e continua: «Caverna de desejos de aparência negra, eu não me atrevo a consolar-me por medo de perder o melhor da minha inspiração, o sofrimento.»

Mónica Baldaque traduziu as cartas que vinham em castelhano e nas notas à tradução explica recuando às origens terenas do Ser excepcional que foi sua Mãe: «A relação de Agustina Bessa-Luís com o castelhano tem raízes familiares do lado materno. A sua mãe, Laura Jurado Ferreira, nascida em Corrales del Vino, na província de Zamora, a 17 de Janeiro de 1897, era filha de Loureço Guedes Ferreira, nascido em Loureiro, Peso da Régua, que por motivos profissionais se mudou para Zamora em 1895. Foi nesta ocasião que conheceu a espanhola Lourença Agustina, também nascida em Corrales del Vino, com quem viria a casar-se em segundas núpcias e de quem teve vários filhos, mas só três sobreviveram.»