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domingo, 11 de abril de 2010

A pedra de toque

«A eternidade repetitiva pode parecer atroz ao espectador; é satisfatória para os seus indívíduos». Disse-o Adolfo Bioy Casares no seu incomum livro La invención de Morel. É uma legitimação inteligente da angústia de Sísifo. Redigida meticulosamente a frase resiste a uma aprimorada hermenêutica. Note-se que não há nela sequer um «porém» adversarial que torne o seu segundo segmento uma contradição ou uma excepção ao primeiro. Aqui a satisfação é como uma realidade tão regra geral como atrocidade. Repare-se que o que é atroz está relativizado por um «parece» que degrada a asserção pela desvalorização do observar que a afirma, enquanto que a satisfção «é». Constata-se, enfim, que a rude e dolorosa atrocidade corresponde a medíocre e quase insensível satisfação: a eternidade repetitiva «é satisfatória».
Eis a grande literatura, cinzelada em pedra polida até que o remate final e o polimento total tornam cada frase a pedra de toque de uma magnífica construção.

domingo, 1 de novembro de 2009

La Invención de Morel, de Bioy Casares - finis



Livro pequeno mas que esgota muito tempo a ser lido, como quando se caminha pela areia de uma praia, as pernas pesadas a arrastarem-se, os olhos postos no mar, o horizonte móvel parecendo fixo.
A invenção de Morel é uma máquina que anula a ausência, tornando o presente eterno através da «conservação indefinida das almas em funcionamento», ilude a distância e gera o aparente instantâneo.
É uma forma de «dar perpétua realidade a uma fantasia sentimental» numa ilha povoada, afinal, de reproduções vivas, espécie da caverna platónica com a diferença de que as sombras do reflexo ganham forma e corpo como o de Cristo pelo mistério da transubstanciação, mas aqui num mundo desertificado em que os seres não são pessoas mas apenas a possibilidade de serem sonhadas.
No final o herói sobrevive, dá-se por morto para não morrer. Um livro extraordinário.

sábado, 24 de outubro de 2009

Dormir al Sol, de Bioy Casares



Enganei-me. E como sou superticioso, acredito no valor simbólico do engano.Tinha comprado dois livros de Bioy Casares. Ainda não acabei de ler um deles e hoje, com a vista ainda meia turva de sono, peguei no que julgava ser esse e levei-o para continuar a leitura, com o propósito, aliás, de acabá-la, porque deve haver uma qualquer lei do consumo de literatura que define a quantidade máxima de livros que simultâneamente se estão ainda a ler sem chegar ao fim.
Tarde demais dei pelo erro. Já não podia voltar atrás para o reparar, porque é dia de preguiça e ao mesmo tempo arrisquei seguir o trilho que o destino me assinalara. Agora está inevitavelmente inciado, o que é irritante por aumentar a minha dificuldade em reduzir as pendências literárias e ainda por cima, estou seduzido pelo que leio e vou ser vítima da inevitabilidade.
Assim foi que iniciei o Dormir al Sol. É uma narrativa contada num contexto de um matrimónio quesilento, no território azedo dos mal-entendidos e das zangas, em que é falso que as pessoas se entendam a conversar, por ser precisamente a conversar que se irritam e o silêncio equivaler à paz.
Diana, cavilosa e desconfiada, qualquer boa notícia a entristece, porque dá a supor que, para compensá-la, virá uma má. Para si a frase «se não queres entristecer-me, não estejas nunca triste» tem como resposta razoável «então, não venhas com a história de que é por minha causa que te preocupas». E abre-se a cena do ódio e da recriminação.
É o mundo do «descontentamento geral», das indispostas e queixosas senhoras do «grémio das esposas». Haverá seguramente livros sobre maridos contentes e mulheres felizes, na base do era uma vez. Este está-me a parecer que trata da teoria geral da indisposição e seus fantasmas.
«Peripécias inusitadas», diz-se na contra-capa a anunciar a obra. Ou talvez não. Depois digo se não são, afinal, modos extraordinários de contar lugares comuns.

domingo, 18 de outubro de 2009

La Invención de Morel, de Bioy Casares



São livros de formato pequeno, que cabem precisamente num bolso, artigos de uma colecção em cuja selecção se percebe ter havido critério. Edita-os a Alianza Editorial. Publica-se nessa forma todo o Borges e qualquer dia já li assim todo o Borges editado. Agora comecei o Adolfo Bioy Casares que era amigo do Borges e que o Borges prefaciou e que em certas fotografias parece o Borges e que se divertiu com o Borges na sublime arte da risota inteligente. Chama-se La Invención de Morel. O dito Morel só surge na página 49, inesperadamente. Tive de voltar atrás para confirmar se o autor não tinha falado dele anteriormente. Mas não tinha, de facto.
No prefácio que referi o Jorge Luís Borges fala do que chama com notável capacidade de sugerir «a novela de peripécias». A maior parte das narrativas são assim baseadas no suceder de coisas que sucedem. Nesta são ocorrências. Surgem exteriores ao narrador, o leitor ganha a ilusão que têm a ver com ele e, por via disso, que têm a ver consigo.Surge assim «a casa infestada de ecos», as «bibliotecas inesgotáveis e deficientes», e, para animar quem vive «em ruína incómoda» o acicatante «bordel de mulheres cegas». Faz sentido porque o amor é cego, os escritores são loucos e os russos demonstaram que em Literatura já não há impossíveis.