terça-feira, 30 de setembro de 2008

A Hora Universal

Durante muitos anos não usei relógio. Era um tempo em que não havia telemóveis com relógio, nem relógios digitais nos automóveis. Aprendi, primeiro, a espreitar as horas no relógio dos outros, depois a adivinhar que horas seriam. O relógio do Instituto de Biologia Marítima, ao Cais do Sodré, e o da estação de comboios do Rossio ajudavam, o do Aeroporto também.
Nessa altura não só não chegava atrasado a encontro algum, como tinha sempre o sabor agradável de um avanço sobre todos os horários e o prazer de fruir o tempo ganho ao tempo.
Muitas vezes me perguntaram então pelo porquê de não usar relógio. Nunca disse que me tinha impressionado o momento em que os relógios tinham passado de maquinismos discretos para se verem as horas, escondidos no bolso, os antigos com corrente, disfarçados sob o punho da camisa os chamados de pulso, para o despautério exibicionista de estarem afixados quase rente às costas da mão, visíveis, ostensivos, com enormes mostradores, para que, mostrados, se adivinhasse o preço e através dele se intuísse o status.
Acontece que o ano passado me ofereceram um relógio, bom, bonito, discreto.
Usei-o até que outro dia parou. Foi mudar a pilha, pois não poderia ser uma questão de esgotamento da paciência. Voltou a funcionar mas, uns dias depois, parou de novo.
Sepultei-o pois, discretamente, numa caixa onde guardo todos os outros relógios, os da minha infância e os da minha juventude, do tempo em que eu tinha todo o tempo do mundo e o espaço do universo era todo meu.
Agora olho para o sol e sinto o ruído gorgorejante das entranhas e calculo cronometricamente que daqui a pouco é hora de ir comer. Mais logo durmo e quando chegar a lua sonho.
Com a raiva com que ando ao mundo um dia ponho uma bomba no relógio que dá o TMG, a Hora Universal.

domingo, 28 de setembro de 2008

Congestão pela tarde

Há na Travessa do Monte um restaurante de comida indiana, em frente do qual está plantada uma agência funerária cujo letreiro a anuncia aberta vinte e quatro horas por dia.
Ora vinha ainda meio azamboado da conjunção gastronómico-funerária quando, ao olhar para trás, num gesto instintivo, como se a da foice me seguisse da casa de pasto para a casa mortuária, vi, na parede de uma casa que se está a afundar num obliquar perigoso, a escada exterior já a fazer um ângulo que desafia a força centrípeta, este mimo de inscrição: «amores, calores, rumores e sabores».
Cheguei ao Largo que se chama da Graça, sem ter achado graça nenhuma. Pela tarde parou-me a digestão e uma dor de cabeça tomou conta de mim.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Um livro interminável

Tenho-o comigo, volto a ele. É um daqueles livros que se desejam intermináveis. É a crónica de uma vida, um livro em que seguimos na peugada de quem viveu, fazendo da sua sombra a nossa forma de viver. Um livro sincero, feito de inesperadas improbabilidades. Ruben Andresen Leitão foi na vida Ruben A. Num momento de génio encontrou Ruben B. O diálogo entre ambos é memorável. Mas esta noite que passou, antes de entrar definitivamente num sono de brutos, li-o, mais umas folhas. Chama-se O Mundo à minha procura. Comecei pelo segundo volume. Acho que já o disse aqui. Fiquei no «impulso que quase me distraía para debaixo de um carro». Foi aí que adormeci como se morto. Atropelado pela vida. Amanhã renasço, para mais umas páginas.

domingo, 21 de setembro de 2008

A janela entusiasmante

A Avenida de Berna é, pelo inóspito do vento que a varre vindo das furnas do Monsanto, e pela extensão que duplica quando um peão se engana e dá consigo a vaguear como se fosse para a Rua da Beneficência, a linha férrea a atrapalhar, um sítio mau para um turista desorientado. E há muitos desses vagueantes sem norte. Ainda há pouco, vistas do alto desta janela onde se reflecte o tardio poente do Verão que já foi, ali estavam duas debruçadas sobre folhas de um mapa que se volteava. A esta hora fechou a Gulbenkian, de restaurantes das redondezas quase não se fala porque não há, e no Campo Pequeno raramente há bois e o volteio ao redondel é nas galerias de um shoping subterrâneo. Entusiasmado de tão condoído, imagino-as, perdidas, a caminho do Parque, por ruas tristes sem ninguém, rumo ao sombrio e domingueiro lugar de aluguer soturno de uns corpos tresmalhados. Pelo caminho encontrarão El Corte Inglés e duvidarão de que não sejamos um excerto da Espanha, até porque, perdidas de todo, a última referência que tiveram foi, virar à esquerda ao chegar à Praça de Espanha. Moe-me então um assomo patriótico raivoso porque, as tristes, estão sós e pior do que iso sem companhia.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

O construtor Solness

A peça é do Henrik Ibsen, um monólogo, uma hora e meia em palco. Só um artista de excepção resiste, ao esforço de memória, os nervos em pressão constante. No caso a personagem muda de idade, de mentalidade e de ideologia, de sexo até.
Beatriz Batarda é, de facto, extraordinária. Recebe-nos sentada na borda do balco, uma perna pendente, como se a marcar o tempo que falta. Extasia-se em emoção como um grito de dor qual sirene atroando os ares a anunciar a guerra de extermínio. Foi no Teatro Cornucópia. Há meses que não saía. Regressei a casa magoado de beleza.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

O viajante do imaginário

Uma lua imensa no céu, para os que olham para o céu. Atravessava-a, espreguiçando-se, uma nuvem, novelo patrício de fumo azul, atrás da qual se escondia o príncipe de todos os mares, o mar da tranquilidade. Durante a noite o céu escorreria em chuva, abundante, vivificadora, convocando para a madrugada cada um dos passáros da terra e seus gorgeantes cantares. Na terra, seres irmanavam-se então numa cadeia forjada, corrente a corrente, de ânsias de bondade. Pela hora do jantar, em torno do fogo da amizade, quando os primitivos sentimentos se reunem agregados pela força da pertença, uma tribo acolhia, como numa dança ventral, o viajante do imaginário. Foi então que surgiu, na galáxia demencial que lhe povoa a cabeça, calote esférica onde se revolvem todos os firmamentos, a explosão primeira, mãe de toda a vida e de todo o riso. Sentia-se, enfim, em casa.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Raios o partam!

Consegui acabar de ler a correspondência entre o José Régio e o Vitorino Nemésio. Esperava algo de grandioso, terminei com uma mediocridade gritante. Às cartas entre ambos a edição junta outras, de Alberto Serpa, Adolfo Casais Monteiro e João Gaspar Simões, todas a propósito do que é afinal a ideia do livro, porque esta edição obedece a uma ideia: um conflito literário, feito de «desentendimentos provocados por boatos e picardias de ambas as partes, que terão origem, entre outros factos, na notícia publicada na Presença dando conta do lançamento da Revista de Portugal, tardiamente e omitindo o nome do seu director». Palavras das organizadoras Isabel Cadete Novais e Manuela Vasconcelos.
Estou atónito, aturdido de espanto e minado de incompreensão. Porque se edita um livro destes com a fradilqueirice do pior que o humano tem, mesmo quando o humano são escritores?
Na sua carta de 17 de Agosto de 1938 Nemésio invectiva Casais Monteiro: «ainda bem que V. me deixa a alternativa de malcriado, para eu me livrar da sua acusação de "desonestidade" na nefanda interpretação que dei ao caso da separata (...)». Numa carta desse mesmo tempo Régio dizia a Nemésio: «você, afinal, não soube sacrificar os seus pequenos ressentimentos pessoais a uma coisa que a revista estava sendo».
É este o estilo geral de um epistolário em que no princípio se trocavam pétalas de mimos adjectivados em rosas e verbos de enleantes heras de fraternidade cultural.
Enfim, uma choldra! «O meu pessimismo a respeito da grande maioria dos homens não tem senão crescido», escreveu Régio a Nemésio em 7 de Julho de 1937. O meu também. Edições destas ajudam à bandalheira, ao descrédito, ao fastio, à ideia de que nada muda e há nos grandes cultivados a mesma miséria moral que nos alarves analfabetos que deles se riem.
Maldito livro, pois, mal empregado gasto, não fosse eu não querer ficar com a Obra Completa do Régio afinal incompleta.
Copio da carta com que fecha o livro, escrita pelo Adolfo Casais Monteiro ao José Régio, em 29 de Outubro de 1938. «Citando a sempre oportuna frase do Pessoa: seja como o for, raios o partam!». É isso mesmo, raios os partam a todos, incluindo os que tiveram a peregrina ideia!

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Cor de fogo

Dei-me finalmente uns minutos, depois de estar enclausurado a trabalhar desde a madrugada, para passar os olhos por uns momentos de literatura. E cá estou eu com 18 euros de José Régio, como ontem me queixei, como se não pagasse por um livro o que um drogado não paga por um chuto, mas cá estou, dizia, a ler 16,20€, preço FNAC, de cartas do e para o Vitorino Nemésio. Estou extasiado com aquele tempo em que se escrevia como se o tempo humano fosse o relógio da eternidade. Instalado em Montepllier, o autor de Mau Tempo no Canal comunica: «vem aqui quase todos os dias uma sueca de calções de marinheiro (ai o Botto!...] e blusa cor de fogo, que VV nem imaginam». Como tudo isto se compreende e sente desavergonhadamente.

Kafkaesco ou um bródio?

Confesso que estou na fase em que me pergunto se um livro escrito em alemão pode ser verdadeiramente traduzido em inglês ou se quem souber italiano e não dominar a língua de Goethe, não fará melhor em tentar lê-lo através desse riquíssimo modo de expressão. Mais: estou na fase em que, depois de ter deixado de assinar o TLS, porque raramente o conseguia ler todo e muitas vezes não lia sequer nada, acho que era ali que ainda conseguia entender-me ainda com um pouco de densidade cultural fora do estilo jornalístico-socio-político-psicanalítico do New York Review of Books, para falar em duas referências em língua inglesa do «magazine litéraire».

Ora quiz o destino que fosse precisamente numa referência a esta revista, cuja beleza é acrescentada pelos desenhos à pena do David Levine, que eu encontrasse hoje referência a uma nova biografia do Franz Kafka, escrita por Louis Begley. Vou fazer um esforço por ler a recensão e talvez mande vir o livro.

O novo ensaio biográfico põe a questão de se deve ou não aceitar-se a visão que Max Brod, um contemporâneo do autor do Processo, trouxe para o mundo dos interessados em saber quem era, afinal, o criador de Joseph K.

Eu para já aceito, porque não quero ser ingrato à mão amiga que me emprestou o livro do Brod. O Begley que espere a sua vez, até porque me irrita a palavra «kafkaesco» que por ali anda com uma ressonância a simiesco. Um bródio, enfim, já que atiramos palavras onomatopaicas às ventas uns dos outros!

domingo, 7 de setembro de 2008

Cara Imprensa

A Imprensa Nacional tem sido editora de livros que outras editoras não publicariam e isso é bom para a cultura. A Imprensa Nacional tem publicado bons livros mesmo quando edita discutíveis livros e isso é excelente para a cultura. Agora o que a Imprensa Nacional não pode é praticar os exorbitantes preços que cobra pelos bons livros que indiscutivelmente edita. É que a cultura não suporta tudo, incluindo os preços da Imprensa Nacional. Eu calculo que o negócio do Diário da República é capaz de não dar grande lucro, pois é um jornal sem anúncios e com notícias indigestas. Mas fazer os que querem outra escrita e que não têm culpa pagar a factura é que não é justo. Vem a isto a propósito de ter comprado dois magros fólios, um com cartas do José Régio ao filosófo Álvaro Ribeiro, outro do mesmo Régio a Vitorino Nemésio. Por ser serviço público, não poderia a Imprensa fazer um descontozinho? Juro que o aplicaria em mais livros, mesmo da Imprensa, mesmo nos discutíveis.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

O mau hálito

É extraordinária a agressividade das cidades. A agressividade de certas ruas de Lisboa. São automóveis esganados a caminho do próximo semáforo, conduzidos por gente ávida de vingança e não achando outra se não libertos enfim dos humilhantes empregos e antes de chegarem a casa para descarregarem humilhando os que lá estão. São os moinhos de café que parecem triturar pregos e latas ou parafusos e nos cafés as chávenas atiradas como numa gargalhada de cacos umas contra as outras e os copos. São os velhos surdos e os novos vocais, cada um a seu modo a quererem fazer-se ouvir, mesmo pelos que não querem ouvir. É extraordinária a violência sonora, a selvajaria verbal, a clausura dos locais, abafados, húmidos, pestilentos. São os caixotes de lixo a transbordar, o cheiro a fossa os cigarros retardados, a defecação sistemática dos cães, o passeio público feito retrete canina. São os pombos moribundos e os vagabundos. É a dor lamurienta dos excluídos rapandos nos caixotes e dormindo pelos cantos. É a nossa impossibilidade de sairmos daqui. É o mau hálito disto tudo, a roupa urbana por mudar, a de baixo.
Hoje começou a chover e eu lia em O Mundo à minha procura, do Ruben A., a frase magnífica: «O Verão cansou-se». Como eu o compreendo.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Um pequeno incidente

Ter ido a Vila Franca de Xira por razões de serviço deu oportunidade de visitar o Museu do Neo-Realismo. A arquitectura do edifício é notável, a amabilidade de quem nos recebe cativante, a sobriedade bela do modo de expôr uma arte dolorosa vinca a alma do visitante.
Talvez o meu ser ruminante me tenha feito notar que está ali o Vergílio Ferreira, com o Vagão J em destaque e o livro de viragem, o Mudança, obras do antes de o autor da Aparição entrar na desbunda vociferante contra os «neo-realeiros» que, se o trataram mal, tiveram também muita paciência para o aturar.
Cultura militante, numa luta intestina entre conteúdos e forma, atinge o seu momento mais agónico quando o desconhecido António Vale na Vértice entra na liça marcando a agenda com um artigo intitulado «Cinco Notas sobre Forma e Conteúdo». Bombo da festa Fernando Lopes-Graça. O nome do crítico escondia o seu clandestino autor, Álvaro Cunhal, cujos desenhos no cárcere ali estão.
Lembrei-me disso, como quem se lembra de um pequeno incidente numa história de família.
«Olha o Papiniano Carlos», disseram gaiatamente a meu lado, ao surgir a fotografia. «Nunca mais se falou nele». «Pois não», respondi, em nome dos vivos, dos mortos, dos lembrados e dos esquecidos, enquanto reparava naquela capa para o Carlos Oliveira, cuja escrita é a invulgaridade feita substância, o dito transformado em modo de dizer.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Cavaleiro de Oliveira

Há coisas na Livraria Bertrand que espantam: ter deixado esgotar o Aquilino, tornando raridades disputadas a bom preço livros como O Escritor Confessa-se, a sua notável auto-biografia e tornar praticamente impossível de encontrar a esmagadora maioria da obra do Vergílio Ferreira. Claro que a Bertrand não é serviço público e é livre de fazer funcionar o mercado e, detendo os direitos de edição de um autor, condená-lo à morte pelo esquecimento.
Foi com júbilo que este começo de manhã vi aqui uma notícia: a Bertrand vai voltar a editar o Aquilino, no caso O Galante Século XVIII - Textos do Cavaleiro de Oliveira.
Ora por falar em Cavaleiro de Oliveira, o nome traz-me tais reminiscências que é motivo para um homem deixar no cabide do guarda-fatos a má catadura e tentar sorrir de dentro para fora.
Viva, pois!