segunda-feira, 29 de maio de 2006

Maria Ondina

Surgiu há muito na minha cabeça, hoje foi apenas a facilidade de lhe dar vida. Talvez a noite soturna, a memória da distância, a agonia da incompreensão. Jardim de essências, é dedicado a Maria Ondina Braga. Coloquei-o aqui.

domingo, 28 de maio de 2006

Uma tarde de calor

Basáltica e rude, a natureza mineral e áspera de todas as coisas, irregular na forma e incerta na sua aparição, nela surge, por um momento fugaz, o milagre da poesia. Abafa-o, porém, a fealdade da indiferença circudante, o ridículo viscoso de uma tarde de calor. Não se inflamam, por isso, as almas presentes, incham, pelo contrário, o corpos dos ausentes. Com o chegar da noite regressou a monotonia do amanhã. Um dia passou. Um dia fora de casa.

sábado, 27 de maio de 2006

A escrita automática

Ao tentar explicar isto aqui escrevi assim: «A Janela do Ocaso» é o meu eu intimista e literário, o ser ledor e reflexivo que vê a vida através do teatro de sombras chinesas que na escrita se project». Como é costume a frase saiu-me, espécie de escrita automática de que me surpreendo ao lê-la. E, no entanto, as contingências da vida empurraram o ser ledor para o saguão escuro em que só há o ser escritor. Prisioneiro de si, esse ser funciona por reflexos, espécie de bolbo raquidiano que comanda apenas o modo, a forma, a concordância verbal. Tudo o mais, como se testamento de morto, está escrito. Povoado de sombras, limito-me a escrevê-lo tal como se o estivesse a ler.

sexta-feira, 26 de maio de 2006

O homem da maratona

É uma luta diária contra o tempo. Começa-se por trabalhar mais depressa, por se encurtarem as horas de refeições, salta-se mesmo o almoço, por vezes nem se janta, há dias em que mal se come. Descobrindo que não há que dormir tanto, rouba-se ao descanso, ilude-se a sonolência, engana-se a habituação viciosa do corpo esgotado ao estridente despertador. Há no homem da maratona, a esganada ambição da meta, a inércia tresloucada do correr. Cronometrado ao segundo, retesa-se num espasmo final, antes de cair de borco, o coração a rebentar, tudo perdido por uma fracção de segundo. No podium da vida não há lugar para tantos e ele é, afinal, um anónimo no pelotão. No sprinter final, joga o seu destino. Um dia, trôpego de velho, uma manta pelos joelhos, é o que lhe valerem as suas recordações. Às vezes são recortes amarelecidos de jornais, fotografias sumidas num álbum sebento. No jardim da indiferença, já ninguém os ouve. São os recordistas da imobilidade, campiões da monotonia, medalhas de ouro de um mundo que já passou.

quarta-feira, 24 de maio de 2006

Um farol de felicidade

Encontrei-a dezassete anos depois, bonita, jovial, entusiasmada. Irradiava alegria pelo que fazia e bem estar no que vivia. A dois metros de nós estava um, a fazer esforços para fingir eficazmente que não me conhecia. Outro, inopinado, apertou-me a mão circunstancialmente no «como está» seco e convencional. Respondi um «olávocêcomovaibemobrigado», aquela frase magnífica com a qual fica logo tudo despachado. Por momentos percebi o que é ser feliz. É algo de irradiante, como se uma incandescência nocturna e encandeante.

segunda-feira, 22 de maio de 2006

Melhor vida

Nm quadro impressionante que está exposto no Museu das Janelas Verdes está o retrato de uma velha de lábio mirrado e olhar oblíquo, de refogado ressentimento. Estão lá as datas do nascimento e morte. A propósito de morte diz-se que foi «para melhor vida». Olhando-a antes de sair, só poderia concordar. «Melhor vida» para ela e para os outros seguramente. Basta olhar para a cara.

sábado, 20 de maio de 2006

O reduto último

Esta noite não ouvi os pássaros que cantam por aqui em frente pelas quatro da manhã. Foi uma noite sem pássaros e sem canto, sem gorgeios e sem piares. Esta noite não vi outra coisa mas só a escuridão do dormir, onde nada se ouve e onde nada nos dizem. É o reduto íntimo último da nossa privacidade, dormimos connosco na ilusão da companhia.

domingo, 14 de maio de 2006

Cada criatura humana

Continuo a ler os «papéis avulsos» do Machado de Assis, onde descobri que «cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro». A observação é interessante, a consequência sinistra. No caso, fardado o homem de alferes, o alferes eliminou o homem. Bem podia a patusca tia Marcolina, inconsolada viúva de capitão, embeiçada pela farda, abraçá-lo, achando-o, deleitada, uma bonito rapaz, e jurar, ambígua, que não havia em toda a província outro «que lhe pusesse o pé adiante». Achando-o sozinho, «nenhum fôlego humano em redor», enfim, «entre galos e galinhas tão-somente, um par de mulas que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois», despido enfim de alferes, o homem descobriu, pela alma interior, que a melhor definição do amor «não vale um beijo de moça namorada».

sexta-feira, 12 de maio de 2006

A lousa de uma vida

Talvez porque um meu amigo me tenha dito que a minha escrita lhe tenha lembrado a do Machado de Assis. Talvez por eu não conhecer o Machado de Assis. Talvez mesmo porque ontem, ainda encontrei, depois do jantar, meia-hora para ir a uma livraria e nela estava um edição comprimida de um livro que o Assis escreveu e de que o meu amigo mandara vir de propósito do Brasil, uma versão original e ainda por cima ilustrada com ironia. Talvez por tudo isto. Talvez por ter acordado de madrugada, com meia-noite mal dormida, ainda li um dos contos desse livro, que se chama «Papéis Avulsos». O conto é curto, mas eu não tive tempo para mais. Agora, talvez como quem bate, aos murros, à porta de toda a gente aqui da rua primeiro e da cidade depois, para os acordar, a meio desta noite, como se fosse a última noite, aqui estou. Cito do «Verba testamentária». É o últimos dos contos, mas sucede-me, muita vez, ler livros de contos do fim para o princípio: «Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa apagar o caso escrito». Acordem, pois, todos os que se zangam comigo! Nada é definitivo. A minha vida, breve que seja, é tudo, afinal, «obra de lápis e esponja».

quinta-feira, 11 de maio de 2006

O hipnótico mundo dos quês

Esgotado de sono e sem conseguir dormir, tentei adormecer. Para me tranquilizar comigo tentei ler. Há quem beba leite quente. Voltei ao «Na tua face» do Vergílio Ferreira. Vou mais adiante já do que na página 143. Mas voltei lá, porque tinha sublinhado: «O homem é um animal que chegou ao extremo de se perguntar porquê e para quê. Tendo hoje conseguido ver que que não há nenhum para quê nem porquê, todo o seu esforço deve ser não perguntar mais e ser feliz». Não sei porque leio isto e muito menos para quê. Por causa disse, adormeci, enfim.

quarta-feira, 10 de maio de 2006

E a natureza sou eu

Tinha voz rouca, falava brasileiro e cantava. Bem disposto, inteligente, vivo de expressão, ágil de pensamento. Não sei quem é. Ouvi-o ontem na rádio, por um acaso. Dizia, falando de si e dos seus: «o meu pai que era pobre por natureza». Nunca tinha ouvido tal coisa, pobre por natureza. Como se isso fosse, e há quem, uma certa maneira de ser.

domingo, 7 de maio de 2006

Um livro finalmente na montra!

O autor deste blog, por falar em janela, quase que se defenestrou em alguns momentos da escrita de um livro que, finalmente, está pronto e para o qual estão convidados todos os que comigo compartilham estes momentos. Para simplicar, digo aqui do que se trata. Depois, de link em link, o leitor percebe os pormenores.

sexta-feira, 5 de maio de 2006

As três da vidairada

Eram três a uma mesa, numa hora já tardia para se almoçar. Coscuvilhavam a vida alheia, num tric-tric martelante, quais máquinas de costura a pedal. Uma, esgalgada de formas, com ar seráfico de confessionário, intrigava uma colega, ausente, ratando-lhe as intimidades. A gorda do grupo, com voz de falsete, apoucava a chefe que tinha lá no serviço, macaqueando-lhe as maneiras. Para não lhes ficar atrás, a meã da companhia, rude de gestos, contava-lhes as últimas que se tinham sabido daquela uma e o que se suspeitava daquel'outra. Tentando concentrar-me na minha tarte de legumes, apercebi-me de que eram professoras do liceu. Coitadinhos dos nossos filhos! Se não houver melhor do que aquilo, dão em fraldiqueiros pela certa. Podem não conhecer a ciência do seu tempo, mas ficam enciclopédicos no que ao pátio das cantigas respeita. E por outro lado, ai de quem se mata a ensinar os filhos alheios e tem que gramar disto como paisagem!

segunda-feira, 1 de maio de 2006

Além do limite

«O meu pai fugira com a criada para o ininteligível», conta Daniel, o personagem de «Na tua face» do Vergíllio Ferreira, desfiando a sua história de tristeza. Ele sabe que «deve haver no homem um limite até onde se é feliz ou infeliz, depois a lei já não funciona». Estou a ler, treze anos depois, perdido, para além do limite e cercado do ininteligível. O livro foi publicado em 1993.