sexta-feira, 3 de outubro de 2008

O tempo simultâneo

Disseram-me que estava esgotado. Talvez por isso quando o encontrei comprei-o. Tinha-o lido há muitos anos. É dos livros cujo breve enredo é difícil esquecer. No caso vi que a tradução era do João Barrento. Lê-se depressa. A escrita é fácil. O efeito explosivo vem depois quando já nem se pensa no que se leu. Ontem, entre três linhas de Metro, a amarela, a azul, a vermelha, consegui alcançar as folhas finais. Depois foi ter-me enganado no que li e vir para casa ruminar contra o que supunha ser um erro. Com o meu pobre alemão fui ao original que está on line. Lá estava o mesmo. Na página quarenta e quatro do meu exemplar a jovem personagem era uma criança de dezassete anos. Duvido que se seja propriamente uma criança com essa idade, mas adiante. Aos dezanove quantas ainda são infantis. Uma delas ia comigo no Metro. Não fosse o corpo a saltar-lhe atrevido de dentro da roupa, supor-se-ia, pelo que dizia, uma garotinha. A mãe dava-lhe cinco euros por semana de semanada, ela deu um cigarro a cada um dos vorazes rufiões da sua idade que a acompanhavam, de mau semblante, piores ideias. Mas na página quarenta e nove pareceu-me ter visto que a mesma personagem, a da minha leitura, sem que o tempo da narrativa tivesse mudado, tinha dezasseis anos.
Só a noite passada venci, voltando a ler, a minha dúvida.
Trapalhão a escrever, trapalhão a ler. Não era a mesma criatura com duas idades simultâneas. Dezasseis anos tinha a criadita, dezassete a filha da patroa, Grete, a irmã de Gregor, exactamente esse, Gregor Samsa, o caixeiro-viajante que um dia acordou transformado em insecto. No seu quarto as paredes eram altas, o céu distante.