domingo, 17 de maio de 2009

Acontece

Oferecerem-nos livros, essa coisa magnífica. Maná para quem esgota o que tem em livros e por vezes, já sob o efeito alucinogénico da livraria, se atreveria a ir para além do esgotamento e do que já não tem. Oferecerem livros a quem quer livros, todos os livros. Oferecerem livros a quem foi deixando ficar livros em casas agora alheias. Oferecerem livros, pelas alminhas, pela sua saúde, oferecerem livros que tenho fome de ler, oferecerem livros muito e muito obrigado bem haja e Deus o guarde. Oferecerem livros, essa ladainha que é ofereceram-me livros.
Rachel Jardim, brasileira, escritora. Teve a generosidade de me oferecer seus livros, com amável e sentida dedicatória. Comecei ainda ontem um deles, o que é meio diário, meio relato íntimo, meio crónica de família, o que tem desenhos de João Guimarães Vieira.
Um dia a História far-se-á assim, para se saber como era, como se sentia, como se vivia, com estes relatos do interior.
Chama-se Os Anos 40. Foi publicado no Rio de Janeiro por J. Olympio, Editor. A obrinha tem esta coisa de notável: na página final, como mandava a tradição, tem as notas do editor e da tipografia. Diz que foi confeccionado - palavra ímpar que desapareceu do mundo editorial, com sabor a gastronomia e a iguaria - nas oficinas dos Estabelecimentos Gráficos Borsoi, S.A. em Novembro do ano de 1973. Até aí tudo bem, como se diz, em modo cantante, nesse nosso Brasil. Mas continua: «sesquincentenário do nascimento de Gonçalves Dias, sesquincentenário da morte de Hipólito José da Costa, centenário do nascimento de Laudelino Freire, Rodolfo Garcia, Santos Dumont..e assim.
Já não há disto, minha gente, um editor que mede os anos por datas de vida e morte de seus escritores, como se não houvesse na Literatura outro tempo nem outro modo de o contar.
Vou na página 22 de 119. Se hoje puder e este sol magnífico não me tentar com sua mão macia ou o trabalho não me vencer com sua garra aguda, tentarei ler mais.
Ontem estive com o tio Mário: «nunca vi ninguém partir fatias de queijo tão finas e, durante muitos anos, pensei que aquilo fosse a prova máxima de boa educação»; com «seu» Bernardo «dizem que morreu de desgosto, de surpresa, de perplexidade (foi um enfarte)»; com Florinda que «era parteira e fazia abortos e amor, quase livremente»; fui ainda ao cinema ver O Monte dos Vendavais, que nesse além-mar de língua portuguesa se chamou O Morro dos Ventos Uivantes, e com ele a imaginação em vez de vida: «A vida era mais imaginada do que vivida. Não havia sofreguidão em viver. O ritmo era lento. Um dia me perguntaram - o que vocês faziam em Juiz de Fora, naquela época? Esperávamos. E nessa espera, fora e dentro de nós, as coisas aconteciam». Lê-se isto e como se aprende que no mundo de hoje, em que tanto sucede, afinal, nada acontece.