domingo, 30 de agosto de 2009

Cartas, de António Botto


Será que a palavra desgraçado ofende se aplicada a uma pessoa? E é lógica pensando em António Botto?
Sabe-se que nele a pederastia foi uma estrela amarela ao peito, pretexto para a infâmia. Além disso tinha contra si a diminuição estatutária da linhagem, o pai fragateiro, da origem, no Casal da Concavada, do emprego, ajudante de livraria primeiro e funcionário amanuense.
Sena o crónico maldizente pintou-lhe a personalidade como tinginda de «megalomania mórbida e destituída candidamente de escrúpulos».
Os seus livros foram cremados no Governo Civil. Os militantes da Ordem Nova, Marcello Caetano e Pedro Teotónio Pereira congratularam-se então com o facto.
Escrevendo à memória de Fernando Pessoa, Botto ironiza o lamento: «Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses/Voltávamos à mesma: Tu lá onde/Os astros e as divinas madrugadas/Noivam na luz eterna de um sorriso;/E eu, por aqui, vadio da descrença/Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...».
Em 1932 Botto publicou o volume Cartas Que Me Foram Devolvidas. Em estudo sobre a sua obra José Régio diria: «Em quase toda a nossa poesia amorosa, o amor aparece sobretudo como um entusiasmo do coração e um enlevo da alma (...). Ora leia-se alguns dos mais característicos poemas de António Botto: Quando muito, revela-se neles um enlevo do corpo. A carne dá-se e pede avidamente. Mas a alma reserva-se. E a cabeça interroga, espia, analisa, debruça-se sobre o coração».
Claro que uma tal poética traria dissabores. A substanciação do amor é a grande ousadia para o espírito enamorado. Ainda hoje.