Este espaço está destinado ao reflexo das coisas que leio. A verdade, porém, é que também leio as coisas que escrevo. O jornal Correio da Manhã pediu-me uma história para crianças, que editaria na revista de domingo. A história saiu numa página pensada para mulheres. Talvez porque numa vergonhosa medida ainda são as mulheres quem se ocupa das crianças. A jornalista que me recebeu a prosa disse que era uma história para crianças que os pais deviam ler. Escrevi-a a pensar nisso. Arquivo-a aqui com a ilustração que para ela fez Ricardo Cabral.
«Era uma vez um menino que tinha um pai e uma mãe, um menino que estava na escola. E o menino estava na escola e aprendia verbos, porque quando se está na escola tem de se aprender os verbos e os verbos têm de ser aprendidos. Porque os verbos são o que faz com que as coisas andem, são as pernas das palavras. E se não se aprendem as palavras não andam.
E naquele dia era o verbo ter. Começava assim “eu tenho” e depois “eu tinha” e no fim “eu tive”. E o menino ficou a saber o que eram as coisas que estão e as coisas que já se foram embora. E era uma lição muito fácil e o menino lembrava-se que os avós já cá não estavam, e por isso já não tinha avós e só tinha meio pai porque o pai vivia com outra meia mãe.
E o menino aprendia, aprendia muito e aprendia sempre, mais verbos, mais maneiras de ser do mesmo verbo, porque os verbos têm muitas maneiras de ser, como as pessoas, algumas maneiras tristes como “eu teria” e maneiras de muita alegria como “eu terei”. E o menino lembrava-se do Natal, que cada ano havia, e de todas aquelas coisas que não tivera por ter ficado de castigo.
Um dia o menino tinha de aprender eu “tinha tido”. Foi um dia muito triste. Nesse dia chovia muito e ele sentiu que um dia seria homem. Começou tudo nesse dia. Com muita pena».