sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Endividado como uma mula



Vergonha, mas não vi ainda a exposição, como não fui a tanto sítio onde deveria ter ido, nem fiz tanto do que deveria ter feito. E  está a chegar o dia um de Janeiro e de novo a tentação de jurar que com a passagem do calendário vai mudar tudo. Desta vez não juro. Embora mude muita coisa. Mas encontrei o catálogo da exposição e estive a lê-lo outro dia, acho que cheguei a meio, talvez não leia a bibliografia, mas prometo acabar de ler tudo. É sobre a obra do Luiz Pacheco. Com honras, enfim, de Biblioteca Nacional.
De todos os textos ali publicado sobre a sua pessoa e até agora lidos digo ter preferido o do Vítor Silva Tavares quando, sob o título Pacheco à la minuta inventa todo um vocabulário para nos trazer de volta a imagem impressiva desse portentoso náufrago das letras, atravessando a vida na jangada dos seus escritos próprios e editados, a família às costas: «pintocalçudo, saco de plástico nas unhas (cartola de prestidigitador: sal escalope, cuecas, manuscritos, Lénine ou Peter Cheney), botando parlapié a quem nunca viu mais pintado, travestiza-se em matas-moscas: salte mosca ao caminho, zás, berlaitada».
«Bobo iconoclasta», Luiz José Machado Gomes Guerreiro, Pacheco escreveu muito e editou mais. «Editor empenhado (dívidas por mor do empenho)», «cândido à força de se armar em perverso», «demoníaco palhaço neste circo merdonho», «libertino e pater familiae». A sua revolta libertária contagia, «o que está para trás empurra».
O livro tem dois lados. No oposto, a que se chega virando a obra ao contrário, de novo Vítor Silva Tavares, com nova prosa: Pacheco, editor-orquestra, um em tudo ao «descobrir talentos, escolher papéis e cartolinas, emendar textos, desenhar grafismos, rever provas, regatear orçamentos». E diria mais: vender à mão a cada possível leitor mesmo quando desinteressado ou desinteressante, fazer pacotes atados a fio barbante e levá-los aos correios, estafar uns vinte logo que recebidos do leitor, remeter o pagamento à tipografia «para o dia-de-são-nuca-à-tarde». Parafraseando, enfim: «endividado como uma mula».
«Hoje, o que pensarão de tais deambulações os que andam por aí fardados de editores, seja, os empregados de lixo das fábricas editoriais?». Pois não pensam nada. Talvez por isso mesmo.

P. S. Sou um trapalhão. Leio, releio, tento encontrar gralhas, erros, incongruências, asneiras. Avisaram-me «escreveste um de Dezembro em vez de um de Janeiro». Envergonhado, lá emendei. Doença sem cura.