domingo, 27 de dezembro de 2009

O Livro da Casa, de Fernando Cabrita



Li-o e de repente surgiu-me o nome: Ezra Pound. Hesitei, mas a musicalidade era essa, familiar, guerreira mesmo quando e pacífica, idêntica a virulência torrencial dos versos, o grito e o clamor em estrofes inesperadas. Encontrei-o então na página 82, o «Poema Triste para Ezra Pound», o poeta maior enjaulado como ficou na memória punitiva, conspurcado pela sua adesão fascista, pecado político a obnubilar o génio poético, louco animal rude «ó poeta velho, ó lobo triste/soldade de penas vãs e vagas». Reconheci-os ambos o autor e o seu estro.
Falo do livro de poemas de Fernando Cabrita. Um Canto em múltiplos cantares.
Sabia-o Advogado, olhanense, escritor, mas não o sabia pintor e é dele o quadro que engradece a capa. Sabia-o poeta mas hoje senti-o poeta. A um artista nenhuma Arte é indiferente. Escreve-se na tela escorrem cores desta escrita.
São versos entre si diferentes mas em torno de uma mesma casa, do homem que «percebeu então que construíra a casa - e que a casa, entretanto, o construira a ele». São versos de uma «casa sem nome», versos marítimos de grumete velho devolvido ao mar inicial «velho camarada». Versos de contemplação amorosa, íntima, casta no impudor de ousar amar.
Há nesta poesia um anseio de lar, poemas de um exército derrotado pela longa viagem imperial, saudades de marinheiros porque «breve foi a casa que o temporal varreu», a febre ultramarina dos arqueiros «aguardando uma voz que os conduza a casa. Sempre a casa, a primeira, a segunda, a última casa.
São poemas a Sul, como «o voo livre das âncoras sepultadas nos abismos», poemas de uma janela para a intemporalidade de onde se pressente o mar «pelo cheiro a nevoeiro e as rochas molhadas», e «as recordações ténues de sons e livros e casas e beijos e coisas doces».
Não sou crítico literário porque escrevo e estou contente com o que escrevo e há sempre uma palavra amável que diga de quem se atreve a escrever, a quem arrisca nome, cara, expõe aos públicos as entranhas do sentimentos, o coração da sensibilidade. Sem inveja, sem rancor, sem maldade, com amizade.
Tinha tentado ler há dias o livro num dia de distração. Não se faz um tal crime a uma obra como esta. Hoje o dia deu-me uma nesga de oportunidade. A estupidez organizada de que faço vida impediu-me de ir ao lançamento.
De todos os versos permitam que escolha um, não o de Macias «Macias, o sem lar/mas cujo tecto era feito de todos os tectos/e o colchão era toda a planície/ e o alimento era todo o manjar e todos os manjares/e o amor era o amor que todo o mundo tivesse para dar», que é um momento de beleza dorida. Não o de Macias, apesar de me apetecer lê-lo em cada palavra e soletrar-lhe cada letra. Mas escolho a fala derradeira de «Enrique de Borgonha, no leito de morte em Astorga» quando «fala ao pequeno Afonso», seu filho: «Agora que os corcéis da morte cavalgam já/no meu encalço, e sinto os seus cascos/trotando em minha alma» ele, Enrique, «romeiro de San Jacob e lidador de guerras e conquistas» está em paz: «Nesta hora, amigos e inimigos têm já em mim//o mesmo rosto/e não caem neles ódios ou rancores, amizades ou estimas/tão só a rude melancolia de saber que já na morte me esperam/e fraternalmente nela nos reconheceremos/como no regaço de uma mãe antiga».
Chora-se ao ler isto. «Doma as perdas e os fracassos, e bem assim os triunfos/como um cavalo que te leve para onde tu queres ir/e não para onde ele queira./Sê dono sempre dos teus mesmos passos/e do teu próprio caminho».
Obrigado ao dia que me permitiu ler, obrigado a quem escreveu. Parabéns à Gente Singular, editores.