domingo, 24 de janeiro de 2010

A sinuosa língua


É uma língua de humildes: «arranja-se uma mistazinha não se arranja, senhor João, se faz favor, obrigado, bem tostadinha?».
A forma reflexa «arranja-se» evita confrontar o interpelado com a obrigação de arranjar, com o dever de proceder ao acto, invectivá-lo a ter de fornecer, além disso amplia o universo dos que são destinatários da frase, que deixa de ser aquele, o senhor João, mas passam a ser todos os possíveis «senhor João» e mais aqueles que se devem substituir ao «senhor João», os subrogados de facto ao «senhor João», eu, tu, tutti quanti irmanados agora em torno da ideia da «tostazinha mista», do seu conceito, da necessidade, do preparo da dita, do arranjar modo de ela passar de ideia a realidade, do como é que se desenrasca isto.
O próprio verbo «arranjar», que é o motor da língua, é ambíguo, pois tanto dá para querer dizer «fornecer novo» como «reparar» o que já vem mal de origem, como se a frase admitisse um serviço de má qualidade, defeituoso, com erro, a carecer de oficina logo à saída so standI, uma tosta a precisar de arranjo.
Depois é o diminuitivo «mistazinha», para tornar insignificante o que se pede, no caso uma tosta que em vez de ser normal de tamanho pode ser pequenina, em vez de ter queijo e fiambre pode ter uma coisinha de um e um poucochinho de outro e, ao limite, nada de coisa alguma e um nadica de qualquer coisinha.
Enfim o «não», o «não se» no «não se arranja?», como se mesmo no acto de dar a ordem «arranja-se», e esta mesmo assim já interrogada dubitativamente, isso equivalesse a não a dar através do salvífico «não se arranja», como se o dizer, já gaguejado, «arranja-se» tivesse de se complementar inexoravelmente com o «não se arranja», que logo ali o anula, como se, em suma, o ser ordenante se transforme necessariamente primeiro em solicitante e no fim em coisa nenhuma, sumindo-se no universo gramatical.
Ah! E os agradecimentos antecipados, o «obrigado» antes de ter recebido e mesmo que se não receba, e o «se faz favor» mesmo quando o acto é devido, a cortesia aqui a ser o genuflexório do Direito das Obrigações, o ficar uma pessoa obrigada ante aquilo que devia ser, afinal, a obrigação do outro.
É uma língua de tiranos feitos obedientes, melífluos, raramente sinceros, a hipocrisia uma forma verbal transitiva de se ser um pouco menos do que velhaco e um pouco mais do que cínico.
Mas no fundo, nos meandros das suas línguas sinuosas, há um latejo que as calças arregaçadas verbais mal esconde, de desejo pela tostazinha, sobretudo se mista, quanto mais se possível e então se bem tostadinha!