sexta-feira, 13 de julho de 2012
A simplicidade de Deus
Abre grandiloquente e depois, um pouco a seguir ao meio do primeiro volume, dilui-se na intriga da pequena política e seus actores. Por momentos a escrita tenta aí erguer-se, em voo largo, mas falta-lhe asa e logo baixa ao rasteiro do comentário por vezes brejeiro. Surpreender-se-à aí El-Rei Dom Carlos, na vertente que o perdeu, fulminado como o «caçador Simão» pela pena então iconoclasta de Guerra Junqueiro, com ele a Monaquia agonizante, entre a Parada e a alcova alcovitada, o espectro do regicídio no horizonte, os partidos fracturando-se e com eles a Nação.
São as Memórias de Raul Brandão. Leio-as, e no seu pórtico a retumbância: «Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho poído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra».
Que dizer dessa portentosa escrita, vivida naquela «época horrível», de um horror «porque já não cremos e não cremos ainda», de uma História que «tanto se faz com a verdade como com a mentira»? São crónicas do Passeio Público e da Feira das Vaidades, e retratos burlescos, de gente que hoje são vultos informes, como «o Schwalbach, sempre aflito e sempre despreocupado», ainda do Eça, que «usou toda a vida bentinhos ao pescoço», o Ramalho melhor definido como «um pinheiro com uma melancia em cima».
Sim, isso tudo mas também geniais momentos, arrancados ao peito onde se esconde a piedade amorosa, sobre o Gomes Leal e o Fialho, sobre a penúria e a compulsão, este «um doente com inveja das doenças dos outros», «dilacerando dilacerando-se», aquele «encolhido e friorento», carcomido pela necessidade e, no entanto, voraz ante a vida, e Fernandes Tomaz, «outro homem adorável que morre, mas felizmente não sabe que morre».
Escrevo esta noite. E esta última frase solta-se como uma tristeza que vogasse, errática, pela sala vazia onde me surge. E penso com ele: «Deus é muito mais simples do que imaginas. Rodeia-me - não o sei explicar».