As minhas graves lacunas culturais em matéria de Literatura são no que se refere a autores estrangeiros. Isso deve-se a várias circunstâncias, que eu consiga objectivar.
Primeiro, a preconceitos, que eu sei que é realidade horrível em quem se julga um espírito livre. Mas tenho-os, um deles é haver uma rejeição quase instintiva a ler o que toda a gente, de repente, começou a dizer que leu. Foi por isso que nunca li o Paul Auster.
Depois o preconceito de que os melhores escritores americanos são aqueles que são europeus de mentalidade. E foi por esse motivo que nunca li o Paul Auster.
Enfim, por ter o hábito de, quando gosto de um autor querer comprar e ler a obra completa e não apenas os livros que se assume definirem o melhor da sua escrita, tal é o desejo de querer conhecer também o pior e por isso o escritor em si, e há quem tenha escrito uma estante já difícil de ler no tempo que me resta de vida. Eis porque nunca li o Paul Auster.
Um destes dias encontrei o Diário de Inverno, precisamente do Paul Auster.
Acho que o vira citado num jornal literário. E comecei a ler, em deslumbramento, as «memórias» do Paul Auster.
O deslumbramento nascia da simplicidade da linguagem, porque o Paul Auster é tipicamente americano e das referências ao quotidiano reconhecível na vida de toda a gente e por isso imensa gente se revê ali. Além disso falava dos livros que foi escrevendo quase sem os nomear e dava-me a ilusão de que eu assim iludia o facto de nada ter lido do que era a sua extensa obra.
Estava a resolver-me com ele e contente com isso, como se tivéssemos feito as pazes, reconciliando ressentimentos.
Houve então o momento em que, leitura que se estava a tornar vertiginosa ele descrevia, página após página, as casas onde viveu e eu, que ao início achei a ideia um achado, comecei a saturar-me, perguntando-me se não se seria já escrita a metro para satisfazer o voyeurismo do leitor.
Depois vieram os pormenores da mãe alcoólica, da avó que matara o avô a tiro e o arrazoado da tia coscuvilheira e maledicente mais as mulheres com quem dormiu e eu já me perguntava se aquilo não era devassa de intimidades próprias e alheias e exposição das lepras familiares como os pedintes medievais à porta das igrejas.
Foi quando ele entrou na explicação do "esquentamento" que apanhou em jovem e do líquido verde que lhe saía , dolorosamente, pela ponta da "pila", o urinar um ardor, que eu disse «basta». A "pila" do Paulo Auster já vai muito para além dos meus interesses literários.
Felizmente estou quase no fim da breve obra e por isso posse decretar que já li este livro do Paulo Auster.
Perguntei entretanto já não sei a quem porque é ele tão lido e tão falado e disseram-me que, para além do mais, porque é um homem muito bonito e as mulheres adoram a figura e são as mulheres quem hoje mais lê. Terrível isso. Porque um dos meus atavismos absolutamente nascidos do facto de ter nascido no mato, é essa repulsa para que os puxam pelo corpinho para terem valor intelectual ou os cujo valor também resulta disso mesmo, de terem nascido prendados na aparência. E lá se foi o Paul Auster.
Convençam-me que é um grande escritor, que merece ser lido, porque eu agora, com sinceridade, estou em dúvida, e até já com pena do homem, porque pode não ter culpa de ser no que se tornou nem daquela masculinidade morena e de olhar profundo e doce, farto cabelo em banda larga que lhe dão o tom e a pose.
Estou a escrever estas linhas numa madrugada de insónias, os sonos trocados pelo cansaço, e fui dar uma olhadela ainda a umas folhas do livro, para ver se o salvava. Azar: calhei naquelas em que ele descreve as mil e uma coisas que fez com a mão direita. São páginas sobre isso. Desisto.