terça-feira, 13 de novembro de 2012

O Príncipe Perfeito

Ia cometendo o erro da precipitação. Talvez pelo mau feitio de ter ficado pela folha aberta a esmo, em plena livraria, e extrapolar que o livro seria, vista aquela página, devassa de intimidades ou revelação de trivialidades. 
Afinal, ao chegar ao fim da totalidade da leitura retrato-me. É uma obra comovente. Talvez tivesse feito falta uma revisão que desse ao texto maior extensão em alguns momentos e uma outra ordem na sistematização, evitando a natureza esparsa do que surgem como apontamentos de uma vida.
Mas confesso que a biografia de Rómulo de Carvalho escrita pela sua filha surpreende facetas que me eram absolutamente desconhecidas e que mesmo as suas memórias aos vindouros, recentemente editadas pela Fundação Calouste Gulbenkian não conseguem revelar.
Percebe-se que a auto-contenção do biografado o levaria a, numa escrita que lembra a de Irene Lisboa, não trazer a público pela sua pena aquilo que Cristina Carvalho nos revela numa obra pessoalíssima.
Entende-se agora a angústia existencial de quem não temeu a morte receando, sim, a vida, a que nunca se soube adaptar, percebe-se agora como a meticulosidade era, afinal, a sua relação de ordem com o Universo, através da rotina até no mais insignificante pormenor, a figurar o combate tranquilo contra o Caos que ameaçava desintegrar aquele seu frágil e solitário ser, em constante alquimia de sublimação. Alcanço, agora, em que medida este homem não poderia ter privado com heróis e dos grandes da História rezou que lhes faltava um fecho-éclair, como a Filipe II, ou dos vultos dos idos Descobrimentos se ficou pela malta das naus. Sinto, agora, como após a travessia silenciosa de uma vida ressurgiu como António Gedeão, ele que fora o menino prodígio em poesia.
Pulsa pelo livro a grandeza do que é viver a tragédia da incompletude, a ânsia da perfeição, ele a quem alcunharam, pelo porte, pela estatura moral, "O Príncipe Perfeito", a inocência e a dádiva.
Permitam-me de tudo o poema:

«Uns olhos que me olharam com demora,
não sei se por amor se caridade,
fizeram-me pensar na morte, e na saudade
que eu sentiria se morresse agora.
E pensei que da vida não teria
nem saudade nem pena de a perder,
mas que em meus olhos mortos guardaria
certas imagens do que pude ver.
Gostei muito da luz. Gostei de vê-la
de todas as maneiras,
da luz do pirilampo à fria luz da estrela,
do fogo dos incêndios à chama das fogueiras.
Gostei muito de a ver quando cintila
na face de um cristal,
quando trespassa, em lâmina tranquila,
a poeirenta névoa de um pinhal,
quando salta, nas águas, em contorções de cobra,
desfeita em pedrarias de lapidado ceptro,
quando incide num prisma e se desdobra
nas sete cores do espectro.
Também gostei do mar. Gostei de vê-lo em fúria
quando galga lambendo o dorso dos navios,
quando afaga em blandícias de cândida luxúria
a pele morna da areia toda eriçada de calafrios.
E também gostei muito do Jardim da Estrela
com os velhos sentados nos bancos ao sol
e a mãe da pequenita a aconchegá-la no carrinho
e a adormecê-la
e as meninas a correrem atrás das pombas
e os meninos a jogarem ao futebol.

A porta do Jardim, no inverno, ao entardecer,
à hora em que as árvores começam a tomar formas estranhas,
gostei muito de ver
erguer-se a névoa azul do fumo das castanhas.
Também gostei de ver, na rua, os pares de namorados
que se julgam sozinhos no meio de toda a gente,
e se amam com os dedos aflitos, entre cruzados,
de olhos postos nos olhos, angustiadamente.
E gostei de ver as laranjas em montes, nos mercados,
e as mulheres a depenarem galinhas e a proferirem palavras
grosseiras,
e os homens a aguentarem e a travarem os grandes camiões pesados,
e os gatos a miarem e a roçarem-se nas pernas das peixeiras.
Mas ... saudade, saudade propriamente,
essa tenaz que aperta o coração
e deixa na garganta um travo adstringente, essa, não.
Saudade, se a tivesse, só de Aquela
que nas flores se anunciou,
se uma saudade alguém pudesse tê-la
do que não se passou.
De Aquela que morreu antes de eu ter nascido,
ou estará por nascer - quem sabe? - ou talvez ande
nalgum atalho deste mundo grande
para lá dos confins do horizonte perdido.
Triste de quem não tem,
na hora que se esfuma,
saudades de ninguém
nem de coisa nenhuma.»