domingo, 2 de novembro de 2014

O pau e a pedra


Foi ontem, antes de o dia findar, que, no meio de tantos outros de diversos autores e esparsos assuntos, o encontrei, aqui no bairro, no Artes e Letras, o espaço alfarrabista do Luís Gomes, convivial, amigável, onde livros e conversa se tornam indistintos.
Com este livro Vergílio Ferreira assinalou o corte com o "neo-realismo", trilhando desde então a estrada solitária que o levou a incompatibilizar-se com muitos dos que se haviam arregimentado em torno desse programa literário ideológico da arte como intervenção política, como denúncia e com quem teve polémicas violentas e de quem acabou por guardar rancores de injustiçado, sem que a História o engrandecesse suficientemente pois não há santos sem Igreja que os santifique e ele morreu só. No Museu do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira a sua pessoa é interrompida aqui.
Sei que é uma terceira edição a que tenho aqui comigo, mas que importa se o persegui estes anos todos, à sua procura, para encontrar aquilo que Eduardo Lourenço, seu conterrâneo, amigo e aqui prefaciador avisa ser «caminho que é ruptura ou, em todo o caso, desconfiança em relação à luz excessivamente clara que banhava então o nosso universo romanesco».
O exemplar vem autografado, na escrita miúda que era a sua, económica e concentrada, firmada a dedicatória no 1º de Maio de 1969.
Esta manhã, em que escrevo, ao ver a data fui por um ímpeto à estante conferir no seu diário, a Conta Corrente, no primeiro volume da primeira série o que teria havido nesse dia. Foi uma quinta-feira. Escreveu: «Fui à Baixa. Estive com o Urbano Tavares Rodrigues. Disse-me que a crítica de Le Monde devia ser de um emigrante português emigrado em França e que assina com pseudónimo francês. Bom Urbano, Tenho um dia de falar dele». 
A crítica, saída a 19 de Abril, o mês em que morreu Mário Sacramento, incidira sobre a sua obra Aparição e enfurecera-o. Escrevera sobre ela uns dias antes, irado, militante do seu novo rumo: «O crítico de Le Monde (19-IV) malha-me no "lirismo". O que não malharia num Hermann Broch! Só depois de se professar optimismo, claridade e água do mar, se o reumatismo está de acordo, é que se pode conversar».
Ei-lo preparado para a pancadaria. Para onde não chegar o pau leva a pedra.