terça-feira, 8 de dezembro de 2015

As mãos sumidas


Quando volto aqui e vejo o fosso temporal que se abriu desde o último escrito, humilha-me notar em que selvagem me tornei, interrompidas leituras, livros deixado a meios, mantida a obsessão de os comprar, amarrado à promessa de os ler, moído pela agrura de não ter sido capaz. E tudo isto com a inexorável ampulheta do tempo a escoar-se e a consciência, que nem tudo tranquiliza, de que a vida não são apenas livros. E a nora dos deveres da profissão, à qual burro me amarro, cego a tudo o mais, para que tantos outros tenham o seu pão e eu com eles.
Ontem fui buscá-lo, e aguardava que eu me voltasse a interessar por ele com o mesmo cuidado carinhoso com que o trouxe há meses do Porto, seduzido pela beleza da obra gráfica, atraído pelos esparsos que fui folheando.
São crónicas suas publicadas pelo Jornal da Régua. o lastro humano do sentimento surgido da profissão de médico - essa que traz o grave problema existencial da vida e a inevitável questão da sua precariedade, mais as maleitas do humano e as epidemias da sociedade - que João de Araújo Correia exerceu com devoção.
Trazido à estampa pelo amoroso cuidado de Cruz Santos, pela sua Modo de Ler, que torna cada obra um mimo de beleza e Arte. E resiste e como eu sei o que é resistir como editor, custeando o preço de o ser.
Quando são livros assim, que me parecem despegados como se de folhas soltas fossem, escritos no caso ante a força da "hora de fecho" do periódico que os recebeu - e que dor essa agonia da hora de "entrar na máquina" a prosa ainda a compor-se - dei comigo a ler, em caranguejo, de trás para a frente, em arrecuas discursivos. e a rir baixinho pois era noite, porque é isso que falta a muita da Literatura Contemporânea, a começar pelo que tenho escrito, ausente dela a ironia, confiado o cómico que está aos neopalhaços do circo mediático, boçais até ao rasca, brejeiros para o aplauso e muitos encartados de doutores e que o tornam burlesco e aos jorros de vomitado reles.
E por ali estive, a ler com um lápis na mão, até que me chegou o sono, a terminar o serão com o António Pereira - de alcunha o «sagüi» pelo seu formato simiesco - arisco por fêmea - que «se a menina me desse cúnfia» - mas ela «olhos e ouvidos pasciam-se por longe» - , vindimador «filhote do sítio», calaceiro e manhoso, o capataz a prometer-lhe «quatro ladreiradas nesse costado» e ele, em ânsias de amor a dar-lhe para poeta que «a menina é alta como um castelo onde eu quisera estar preso», mas, triste, daquela tristeza do inconseguido, a morrer solteiro, «solteiro como nascera», ah! mas que «parecia bem no caixão», porque, ungulado de unhas defeituosas como cascos, mãos incapazes de carícia em corpo feminil, «uma senhora teve o cuidado de lhe esconder as unhas nas dobras dum túnica de linho». E assim entrou no mundo dos simples, «ele que nunca se atrevera com vizinha nova ou velha» mas que, suspirante e gemendo, «soltava líricos relinchos ao pé da serraninha».
Adormeci, a tempo de fechar a página e marcar o local, sem dobrar da folha o canto porque seria pecado. E uma sensação de paz confiou-me ao sono.