Um pequeno opúsculo. Trouxe-o comigo e sobre ele escrevo nesta viagem em comboio. Hoje sexta-feira fecha-se no jornal a edição. Li-o há muitos anos. História de emigrante pobre, afinal a de tantos portugueses com que Portugal enriqueceu mundo.
O número de advogados que, saturados da profissão, procurou exílio na Literatura é imenso; aqueles que a exerceram com empenho e entusiasmo lançaram nos seus livros muita dessa vivência humana que lhes foi dada experimentar, tal como aqueles que foram médicos e conheceram do ser humano as chagas do corpo, os advogados partilharam as dores da alma.
José Rodrigues Miguéis teve breve experiência como advogado no seu modesto escritório na Rua das Portas de Santo Antão, em Lisboa, mas a suficiente para ter compreendido que aquele não era o seu mundo, ademais enredado em pequenos casos de litígios comerciais, enfadonhos e rotineiros, uma secura do seu espírito vocacionado para outros horizontes. E para outras paragens, pois cedo sentiu o apelo da emigração até porque, republicano e democrata, incompatibilizado com o regime político que nos era dado viver em Portugal nesses tempos de ditadura política e de asfixia da liberdade de expressão.
Exilou-se, pois, nos Estados Unidos da América, onde seguiria uma rica experiência de escritor e de professor. Escrita essa hoje tão esquecida, mas cuja natureza poliédrica e sentida merecia bem melhor sorte.
Trago hoje o que imagino ser uma raridade, pequeno conto de sua autoria, publicado em 1957 pela editora Estúdios Cor, sob cuja chancela tantos dos seus livros saíram, e onde José Saramago iniciaria, dois anos depois, a sua vida literária como funcionário, antes de se lançar ele próprio na escrita que lhe traria, já no final da vida, o Prémio Nobel da Literatura.
O livrinho traduz a experiência americana de Miguéis, que se radicara nos States desde 1935. E evidencia-a na pele de um emigrante pobre cuja viagem para o Novo Mundo é surpreendida por uma das épocas do ano mais nostálgicas para quem está triste e longe de casa, o Natal.
Enriquecido com desenhos de Bernardo Marques, O Natal do Clandestino traz na capa, como se efígie fosse, a imagem do pobre recém-chegado das suas berças, o saco dos poucos haveres enrodilhado na mão e, sobre ele agigantada, a longa mão da autoridade, na forma de um polícia americano, farda imponente e capa sobre os ombros, a simbolizar a chuva, a intempérie, o desconforto.
«Em nós o homem mata o escritor», dissera o autor numa frase que Nataniel Costa lembra num breve prefácio. Nataniel, director literário da editora, que convidaria Saramago para o seu lugar para se dedicar à actividade diplomática. A inversa não é, porém, verdadeira e a escrita de Miguéis mostra-o bem, ao abarcar na paisagem social e dimensão existencial do ser humano, as suas esperanças e desesperos, as ilusões e os fracassos.
E assim surpreende a chegada a Baltimore de um velho navio, gasto e ferrugento, «uma dessas ruínas obscuras que singram vagarosamente os mares do mundo», velho cargueiro «esgalgado», e a bordo dele «um passageiro de que não rezavam os livros de navegação, um só, que não pagara a passagem, entregue aos cuidados cúmplices de um ou dois marinheiros».
Assim fugiam em busca do pão, clandestinos, tantos portugueses, como outros a “salto” pela linha raiana, que não há fronteiras que tolham quando se busca o pão que mata a fome, própria e a dos seus.
Narrativa sobre a marginalidade, sobre os homens que viviam à margem da lei, pobres socorridos por pobres, a própria tripulação do navio andrajosa, escravizada ao porão enegrecido do lugre, território onde «a solidariedade é outra lei sagrada entre os homens que vivem à margem da vida», há nela o contraste, tão típico naquela literatura de intervenção social entre quantos tudo têm e aqueles outros para quem, «homens que rastejam à superfície do globo e da vida, não há outro refúgio se não esse, ou uma cama de aluguer ou uns braços de empréstimo».
História de quem chega ao seu destino escondido na vileza clandestina, mal armado sequer de manhas que lhe permitam enfrentar a autoridade, a lei, privados de tudo, do dinheiro à documentação, incapazes até de falar um rude inglês, defendidos pelo estribilho «não ispique inglishe», eles são, força bruta e animal de carga, um e mais um que chegam, a afeitarem-se, serviçais, a qualquer trabalho que traga sustento e amealhar porque bocas famintas deles esperam que regressem um dia e antes deles as suas remessas de dinheiro e logo que possível umas mal amanhadas linhas que «nós por cá todos bem».
+
Texto publicado na coluna Ler em Português no jornal Mundo Português, um semanário dedicado à emigração.