sábado, 13 de abril de 2019
Os ratos
Como a memória reconstrói! Li há muitos anos, em 1971, na colecção de livros RTP, o conto A História de Venâncio, Segundo Oficial do escritor Joaquim Paço d'Arcos.
A leitura ficou de tal modo gravada na minha sensibilidade que a usei um dia, como intróito a um alegação oral em tribunal.
O caso prestava-se: tal como Venâncio, aquele que eu então defendia - e que, entretanto, já nos deixou - era vítima do desprezo e da perseguição, ele que fora quem, zeloso funcionário, denunciara a situação criminosa, encontrada no serviço, que, amargo destino, agora o fazia sentar-se no banco dos réus, ao lado do subordinado que justamente denunciara e que, na hora da defesa, tentando fugir à responsabilidade, incriminara soezmente o chefe que assim arrastou para a infâmia. Sairia absolvido depois de duas vezes julgado, a sentença da primeira absolvição anulada por recurso que o Ministério Público teimosamente interpusera.
A noite passada, quando a fadiga já nem notícias me permitia ler, vagueei pelas estantes em busca de algo que, sem esforço, pudesse distrair, e eis que encontro o livro Carnaval e outros Contos de que a história de Venâncio é um dos textos de tal colectânea.
Editara-o a Guimarães em 1958. O meu exemplar tê-lo-ei comprado em algum alfarrabista, ostenta a dedicatória manuscrita «para Minda e para o António de Cértima com a admiração e boa amizade do Joaquim Paço d'Arcos, Nov. 58».
Li da obra, primeiro, um dos contos, à sorte, precisamente aquele que se chama - ele há acasos! - A Confissão do Dr. Barreiros, sem saber que, voltando ao índice encontraria a história de Venâncio. O cansaço desandara, ao entorpecimento sonâmbulo sucedeu uma vigília tranquilizante que só pela madrugada daria em insónia.
Imagine-se agora o que é eu ter fixado quando lera uma história e sobretudo um modo de a contar - e tê-la declamado naquele tribunal e repetido tantas outras vezes ante pacientes ouvintes - e, afinal, agora ao relê-la, verificar, com espanto, que não fora nada assim que o escritor a configurara.
O enredo é a bizarra história de um funcionário, cumpridor e obediente, que, constatando a existência de ratos na sua secção, prontamente informa o seu chefe; chefe esse que faz subir na hierarquia da Administração o facto, dali ao Chefe da Repartição, deste ao Director-Geral, enfim o ministro, indo, no final, o caso ao próprio Conselho de Ministros, porque o perigo de um rato num recôndito lugarejo do Estado é ameaça global ao arquivo de todo o Estado.
O resto o leitor supõe. Foi empossada Comissão de 29 membros para estudar o caso e propor medidas, medidas que nunca chegaram a ser propostas, pois o areópago de membros reunira uma só vez: «A doença do Presidente, as inúmeras ocupações dos vogais não haviam permitido que ela se desempenhasse do encargo assumido».
Quanto aos ratos - que na designação da folha oficial [«esse que nunca erra, porque se chama "Diário do Governo", ironiza, cáustico, Paço d'Arcos] haviam sido denominados «mamíferos miomorfos, da família dos murídeos, da tribo dos muríneos», esses, multiplicavam-se livremente, nada impedido a proliferação da família.
Mais: recusado o sonho de que alguma vez pudesse integrar a douta Comissão, «Venâncio, a quem os chefes não haviam prestado a merecida justiça, não pôde deixar de ser sensível à delicadeza dos modestos roedores» e em especial «duas ratazanas mais peludas, mais idosas, mais lentas nos movimentos, menos vorazes porque tudo haviam já alcançado e digerido neste mundo». Sim, «para elas, as duas complacentes amigas, passou Venâncio a trazer, nas noites de serão, guardados em velha lata de caramelos, pequeninos, delicados mimos: restos de pão, fatias delgadas de queijo, pedaços tenros de chouriço».
Tanto bastou! Ao precisar de um documento oficial para a Senhora sua sogra, Sexa ministro trouxe à mísera secção, onde Venâncio «burocrata espezinhado» servia o Estado e a ideia que dele tinha como seu Senhor, o horror de darem conta que onde estaria o pretendido papel era agora «um amontoado de papéis roídos até ao âmago, indecifráveis para qualquer consulta, inutilizados para qualquer propósito».
Tudo visto e ponderado: «Venâncio, que atentara contra a segurança do Estado, causando a este irreparáveis danos, foi demitido de funcionário público». Assim! «Sua Excelência não transigiu e aplicou aos segundo oficial a demissão pura e simples, pois de roedores está o país cheio!»
Eis a história. E, caramba, no que eu recordava e fui contando, construí, afinal, dentro da história uma outra história.
Para mim, Venâncio alimentara os roedores com pedacinhos de pão com ovo que sua mulher, amável e compreensiva, lhe preparava para esses serões oficiais!
Na minha ideia nebulosa da narrativa, a mulher de Venâncio, «com aquela sabedoria inata que as mulheres têm» [contava eu a quem me dava uns momentos de paciência para escutar-me] logo o prevenira que um subalterno como ele jamais aspiraria pertencer à Comissão de ilustres, ele que pensava ser título de admissão ter sido quem, afinal, descobrira o primeiro rato; no que li o momento é outro e outra a cena: «Para que te serve fazeres parte dessa tal Comissão? ainda se te desse algum dinheiro... Agora só pela honra...», comentara, em jeito de consolo a esposa do triste manga de alpaca.
Enfim, para mim, tudo começava com a descoberta de um primeiro rato, depois outro, enfim a multidão, quando, no que reli, o conto arranca logo com o elenco completo: «Os ratos devoravam, no forro e nos soalhos, dos tectos, das paredes, por entre as prateleiras cevadas de livros e de papéis, a carcaça do velho edifício e o seu venerável recheio».
É isto. E que importa que o conto daquele magnífico escritor - ele próprio funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros, António de Cértima, diplomata - o tenha eu transformado em uma outra coisa, fiel ao essencial, divergente no acessório, que tenha afinal confirmado que o melhor e mais fiel leitor é quem, animado pela leitura, se torna, enfim, escritor do que fora escrito.