sexta-feira, 28 de junho de 2019

Velando o Deus interior


Capa de «Pensamentos para mim próprio», de Marco Aurélio

Levei semanas com ele debaixo do braço, numa perpétua leitura de intervalos.

Após a última página, porém, o livro não regressou à estante. Por aqui tem permanecido, num ou noutro recanto da casa, enquanto me empenho em abri-lo e fechá-lo como a boca de um peixe. Revejo passagens, recordo anarquicamente, numa ânsia desordenada de reler.

Trata-se de um volume pequeno, publicado em 1978 pela Editorial Estampa, o longo título a contrastar com a brevidade da mais vulgarizada fórmula inglesa «Meditations».

Do título original, em grego, não nos chegaram certezas. Não será descabido assumir que nunca o teve, tanto mais que, por quanto se sabe, se tratava de um diário privado, jamais destinado a ser lido por outros olhos que não os do seu autor.

Porém, num desses desvios que tanto se discutem quanto apreciam na história da literatura (à mente logo assoma o dilema de Max Brod entre destruir e divulgar a obra de Kafka), os pensamentos de Marco Aurélio esquivaram-se ao silêncio dos séculos e formam hoje parte do grande diálogo universal.

Sob os meus olhos cansados, as palavras confiadas pelo grande imperador ao recato de um escrito íntimo recortam-se de circunstâncias e lugares de nascimento para me chegarem impolutas. Íntegras apesar de o quotidiano em que são lidas poder bem ser outro planeta face àquele em que foram escritas.

Vivemos numa época em que o tempo se encolhe ao mesmo ritmo frenético a que se desmultiplicam possibilidades e o sentido do relevante e do justo recua inexoravelmente para a sombra.

É para este tempo do muito, e paradoxalmente do escasso, que as palavras de Marco Aurélio se revelam um guião valioso.

Recordam-nos que num mundo em constante devir, onde nem ofensa nem glória serão, por fim, mais que poeira dispersa, a verdadeira tragédia da existência não é o seu fim, mas uma pessoa consentir na desonra da sua alma.

E dizem-nos que essa desonra não pode vir de fora. Que não são a crítica ou má conduta alheia, o infortúnio, ou sequer a morte, a derrotar o espírito humano, e sim o seu próprio empenho em se rebelar contra o que é, ou o desistir de devotar-se, em ideias, palavras e acções, à conduta recta, justa, corajosa, comedida e útil ao bem comum.

Tanto quanto o mundo ao nosso redor insiste em que esbanjemos atenção, Marco Aurélio impele-nos a olhar para dentro. A fundar aí a razão de ser de qualquer movimento.

«Em resumo, tudo o que respeita ao corpo, um rio; e a alma, sonho e fumo; a vida, uma guerra, um exílio no estrangeiro; a fama póstuma, o esquecimento. Que pode então guiar-nos? Única e exclusivamente a filosofia. E ela consiste em velar o Deus interior, para que permaneça isento de ultraje e prejuízo, que triunfe dos prazeres e sofrimentos, que nada faça impensadamente, que se abstenha de mentira e de dissimulação, não tenha necessidade que os outros façam ou deixem de fazer isto ou aquilo; por outro lado, que aceite o que lhe acontece e constitui a sua parte, como vindo dessa origem remota donde ele próprio veio; sobretudo que aguarde a morte de alma serena, não vendo nela mais que a dissolução dos elementos de que é composto cada ser vivo».

O que mais toca em Marco Aurélio não é tanto a autoridade da sua exposição, quanto o exemplo de uma mente consciente das contradições de estar vivo e ainda assim determinada a encontrar constância em si mesma.

A verdadeira dimensão do que escreveu só se revela quando nos damos conta de que o que diz não constitui ensinamento para o futuro, mas advertência para si mesmo. Que, com toda a probabilidade, as suas palavras não brotam de um lugar de superioridade, mas de momentos de falha, de uma consciência que se examina continuamente e exige de si fazer melhor amanhã.

Que um célebre imperador romano do segundo século depois de Cristo possa ainda falar, como mestre e modelo, a uma anónima leitora portuguesa do séc. XXI será marca de um espírito extraordinário.

Será, também, prova da igualdade elementar que nos acolhe a todos sob um mesmo tecto existencial, não obstante a diversidade que nos compele a apartarmos pessoas em função de ocorrências fortuitas, como os pontos do mapa e da linha cronológica em que vivem.