domingo, 13 de outubro de 2019

Robert Walser: a plenitude do Céu

Ler caminhando, ou ler ao caminhar, talvez possa ser assim, que se configure a obra do suíço Robert Walser e o livro das conversas que Carl Seelig com ele manteve quando o encontrou já internado num hospital psiquiátrico, em Herisau.
Patrocinado pela Pro Heltevia, Fundação Suíça para a Cultura,  e editado em Abril, pela BCF, Editores, a obra, que no original alemão se denominou Wanderung mit Robert Walser, vem traduzida por Bernardo Ferro [com revisão de Isabel Castro Silva] e traz na edição portuguesa, assinada em Agosto de 2018, texto de apresentação do curador de Arte, Hans Ulrich Obrist.


A leitura é viciante de tão atraente; de tal modo que dali passei para a busca de toda a obra de Walser.
Um certo instinto levou-me às traduções francesas, se bem que em Portugal haja já parte significativa da escrita publicada: porventura a ideia, mais do que discutível mas que tenho por segura por mero instinto, de que para uma versão a partir do alemão serão o francês e o italiano os idiomas que melhor reproduzirão as subtilezas linguísticas, desde o rigor do vocábulo à cadência do estilo. 
Além disso, trata-se de um modo de escrever poético, luxuriante na adjectivação, embora sem subtilezas estilísticas, mas em que cada palavra vale por si e pelo que onomatopaicamente sugere.
Vindo aqui, que direi do lido sem assassinar a apetência pela leitura?
Falando deste livro de Seelig e das conversas que, entre 1936 e 1956, manteve com aquele que assim acaba por surgir indirectamente biografado, estamos em pleno passeio pela cultura, conhecida como se por uma lenta sedimentação, familiares sendo os autores e artistas, conhecidas as circunstâncias e tudo sempre em simbiose íntima com a Natureza, essa magnífica biblioteca e pinacoteca onde Walser encontra letras e cores, conhecimento e sentimento e o a propósito que ao disperso confere harmonia, mesmo quando surpreendente.
Há, talvez possa dizê-lo, um difuso panteísmo, nessa mansa mística que perpassa pela contemplação extasiada, a alma solitária a corporizar-se pelo que a cerca, em substanciação do que existe pela vida de toda a existência. 
E há, também, direi, nesse vagabundo extravagante e vagueante, uma categoria pessoal senhorial tão rara no mundo de rudeza boçal em que gorgoreja tanta linguagem que se supõe Arte, dignidade na penúria e na renúncia.


Lido o livro em dois fôlegos, li também já Der Spaziergang, traduzido para o francês por Bernard Lortholary e publicado em 1987 pela Gallimard e agora reimpresso em Março. Trata-se agora da escrita do próprio, as suas caminhadas, as suas reflexões: rareiam as alusões literárias, aumentam as menções pessoais, o estilo ganha corpo, longas tiradas em cada marco da jornada, um humor requintado a pontuar sabedoria. Disso se trata, talvez: a obra de um eremita saído do seu presbitério, excerto de vida de um homem de sete ofícios. 
A viagem inicia-se ao sair do seu «gabinete de trabalho ou de fantasmagoria» e precipitar-se na rua. Estou a quase metade de um terceiro livro, outros vêm ao meu encontro, já encomendados. 
Quando gosto, quero saber a extensão máxima do desejo, admitindo mesmo o desapontamento da frustração.
Dir-se-à que esta escrita lembra a que Franz Kafka: não, porque neste, os tectos são rebaixados, os interiores sufocante, em Walser o horizonte é o infinito entardecer e a plenitude do Céu em noite de luar, apaixonado. Chama, sim, numa certa parte, Robert Musil, por um não sei o quê que me surge sem que o saiba dizer; e bem compreendo que se trate de um autor tão prezado por Stefan Zweig, outro viajante pelo território da tragédia, como Friedrich Hölderin, como tantos, errantes e caminhantes.