Os que supõem que eu leio muito ignoram quanto eu já deveria ter lido. Sucede assim com a obra de Rodrigo Leal de Carvalho, que agora iniciei a partir do seu "Requiem por Irinia Ostrakoff".
Conheci-o em Macau, há mais de trinta anos, fomos inclusivamente vizinhos no início da minha estadia naquele território.
Amável, cerimonioso, a natureza das funções que cada um de nós desempenhava, ele Procurador-Geral Adjunto, pôs-nos em contacto oficial em circunstâncias que decisivamente não vêm ao caso.
Não o supunha sequer escritor, mas para ter disso uma vaga percepção seria necessário que a minha vida então fosse outra que não a do cargo para que tinha sido nomeado, e, talvez mais ainda, se esse cargo não tivesse criado, ou eu por causa dele, um fosso entre a minha pessoa e o que não eram funções oficiais. Enfim, tudo lamentável, tudo um erro, tudo em nome de uma funesta ilusão, tudo a atulhar-me de recordações desinteressantes, uma lamentável selvajaria.
O Macau que haveria para conhecer, logo por exemplo, o do seu editor, o Rogério Beltrão Coelho e sua mulher Cecília Jorge e tantos outros que se dedicavam à Cultura, tudo isso eu perdi então.
É com este sentimento nostálgico de inútil arrependimento, impossível a procura do tempo perdido, que terminei, lido aos poucos como só me pode suceder, este seu magnífico livro.
Leal de Carvalho é exímio na arte de contar, um relatar cinematográfico, logo a prender o leitor com a cena de abertura, em que, a inventariar-se os míseros haveres da falecida Irina, se pressente que, envolto no acto, o representante do Ministério Público é seguramente o narrador e por esta via o próprio autor. A partir dali, num tão recordatório ambiente de humidade quente e pegajosa , o ar irrespirável, prossegui para a história daquela ucraniana de vida aventurosa, a ser esgotada desde a revolução bolchevique em 1917, e com ela o exílio para Paris, e despois em permanente viagem, ante o advento do maoismo, pressentido em Xangai, tudo do remedeio à opulência e dali à sordidez, a decadência encapotada pela aparência.
Escrita culta, rica nas referências do contexto histórico em que tudo se move, é também escrita de requinte e de ironia refinada; escrita sensual também, em que a presença carnal nos surge envolta no véu da delicadeza do modo de a convocar.
É também uma escrita bondosa, feita de generosidade compreensiva para os pecados menores, fruto de uma atenta e minuciosa observação dos humanos e das circunstâncias, tantas vezes penosas, em que lhes é dado suportar. O mundo surge-nos ali, como se visto do lado do rodapé da vida, como se a ascensão da rampa que leva aos salões fosse tão efémera quanto a visita, a convite, a um clube exclusivo porque privado.
Vou ler mais, isso em nome de um princípio de que fiz regra, sopesando também o tempo que já se foi: já que leio menos do que devia e do que se supõe, lerei muito do que gosto, nada quase do que suponho não vir a gostar. E não digam que é mundo sem novidade: a haver surpresas, venham as que nos são familiares e são assim já parte do nosso modo de ser.