domingo, 7 de julho de 2024

O zero dissolvente e a fúria de viver

 


O Facebook tem aquela pergunta canónica: «em que estás a pensar?». Neste espaço, a perguntar-se algo seria: «O que estou a ler?». E isso que anima esta minha iniciativa de partilha de notas de leitura. Onde está muito menos do que leio, pois o tempo é escasso e entre as obrigações, as devoções e as tentações, mais curto se torna.

No caso, leio e aos poucos, o romance Angústia, de Graciliano Ramos, na edição da Livraria Martins Editora, sedeada que foi em São Paulo, fundada em 1937 pelo escriturário bancário  José Paulo Martins. Abriu-a num primeiro andar da Rua da Quitanda. E quem é angolano de origem, como eu, sabe que quitanda vem do termo da língua quimbundo kitanda, que significa pequeno mercado de frutas e de legumes. Havia uma na rua que desembocava na minha casa em Malanje.

São curiosas as circunstâncias deste meu livro, lido na 8ª edição, publicada em 1961, sendo que a primeira foi impressa 20 anos antes. Comprei-o em alfarrabista. Pertenceu, em primeira mão, aos escritórios centrais da companhia perolífera Shell. Que desígnios terão sido esses lhe terão ditado o itinerário!

Numerados que foram os livros desta edição, curiosamente ao meu calhou o número 3333, a meio caminho do que identifica a Besta do Apocalipse. 

Agora o conteúdo da obra. Resumir-se-ia magistralmente com a citação integral do que consta das "badanas" assim também chamadas como "orelhas" ou "abas", aquela parte de um livro que é lida e propagada por alguns a dar a ilusão exibicionista de si de que lerem da obra o chamado "miolo".

Curiosamente nessa parte parte do livro, que é, afinal, a dobra da capa, o editor não se intimidou a consagrar, com honradez, que poderia afugentar o leitor: «Livro fuligionoso e opaco», assim o denomina, ante o qual «o leitor chega a respirar mal no seu clima opressivo». E acrescenta, em remate: «Raras vezes encontraremos na Literatura estudo tão completo da frustração». 

Vou na página 141 de 211, seguindo as pegadas da personagem, Luís da Silva, amanuense triste. 

E sinto quanto sentido faz o que, de novo na lateral da capa, ficou como sinal ao leitor, convocando deste a sensibilidade e a compaixão: «Há certos indivíduos que têm instalado na alma um zero funcionando como multiplicador dos valores que se aproximam. Em Luís da Silva, não existe esse dissolvente integral, como poderíamos pensar à primeira vista. Um zero interior anula os valores propostos ao pensamento: nele, o que há é depravação dos valores, sentimentos de abjeção ante o qual tudo se colore de tonalidade corrupta e opressiva. Em Luís da Silva vemos uma fúria evidente contra a sua vida e a sua pessoa pelas quais não tem a menor estima; falta-lhe, na verdade, o mínimo de confiança necessária para viver».