terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Dar-se ao riso

Já não sei onde o encontrei. Mas foi num alfarrabista, seguramente, porque é o que agora se chama, nesta época de eufemismos adocicados, um livro «manuseado».
Ao meu ser ansioso oferece a gratificação de serem curtos os seus textos e chegar-se ao fim de cada antes que a atenção se disperse, esvoaçando das linhas para os sonhos que se desalinham.
Ao meu ser literário são magníficas expressões do melhor modo de dizer. Incapacitantes de se escrever sem vergonha.
Ao meu ser moral aflige-me dar conta que terá sido furtado em alguma biblioteca ou alguma biblioteca o despachou, ao liquidar-se, pontapeando-o para o adelo. Está nele um carimbo a gravar a posse, a certificar o extravio.
São pequenas prosas do José Gomes Ferreira. Pequenas prosas digo eu que as achei grandes prosas e as li inflamandamente satisfeito de as ter encontrado.
Chama-se o livrito, Os Segredos de Lisboa.
A última história, ribombante de riso, é a do Delicadezas, untuosa personagem, melíflua e escorregadio de contumélias e outros arrebiques de veneradores salamaleques.
Li-a, com vontade de que a cidade a ouvisse ler e saísse aos urros de alegria e aos guinchos de gargalhada a ribombar foguetes, livrando-se desta tristeza que em breve se anuncia natalícia. «Ah! Se Vossa Excelência me honrasse com a consideração de adivinhar o que eu padeço!», saiu-se o homem, pobre cobrador de cerviz cambada, num momento de agonia e «os olhos entristeciam-se de um segredo fechado».
Eis a maldade dos sentimentos: a comédia da dor própria é tornar-se na alegria alheia. Nasce assim a figura do palhaço. Uns tempos depois surge o circo e com ele o dar-se ao riso tornar-se numa forma de viver.